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Música Brasileira

"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

quarta-feira, novembro 30, 2005

Flores e Borboletas


Passa uma borboleta por diante de mim
e pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas
não têm cor
nem movimento,
Assim como as flores
não têm perfume
nem cor.
A cor é que tem cor
nas asas da borboleta,
no movimento da borboleta
o movimento é que se move,
o perfume é que tem perfume
no perfume da flor.
A borboleta é apenas a borboleta
E a flor é apenas flor.

Alberto Caeiro

A Vida é Sonho (Ato e Cena I)

"Apurar, ó céus, pretendo, já que me tratais assim, que delito cometi contra vós outros, nascendo; que, se nasci, já entendo qual delito hei cometido: bastante causa há servido vossa justiça e rigor, pois que o delito maior do homem é ter nascido.

E só quisera saber, para apurar males meus (deixando de parte, ó céus, o delito de nascer), em que vos pude ofender por me castigardes mais? Não nasceram os demais? Pois se eles também nasceram, que privilégios tiveram como eu não gozei jamais?

Nasce a ave, e com as graças que lhe dão beleza suma, apenas é flor de pluma, ou ramalhete com asas, quando as etéreas plagas corta com velocidade, negando-se à piedade do ninho que deixa em calma: só eu, que tenho mais alma, tenho menos liberdade?

Nasce a fera, e com a pele que desenham manchas belas, apenas signo é de estrelas (graças ao douto pincel), quando atrevida e cruel, a humana necessidade lhe ensina a ter crueldade, monstro de seu labirinto:

Só eu, com melhor instinto, tenho menos liberdade?

Nasce o peixe, e não respira, aborto de ovas e lamas, e apenas baixel de escamas por sobre as ondas se mira, quando a toda a parte gira, num medir da imensidade com a tanta capacidade que lhe dá o centro frio:

Só eu, com mais alvedrio, tenho menos liberdade?

Nasce o arroio, uma cobra que entre as flores se desata, e apenas, serpe de prata, por entre as flores se desdobra, já, cantor, celebra a obra da natura em piedade que lhe dá a majestade do campo aberto à descida:

Só eu que tenho mais vida, tenho menos liberdade?

Em chegando a esta paixão um vulcão, um Etna feito, quisera arrancar do peito pedaços do coração.

Que lei, justiça, ou razão, nega aos homens - ó céu grave! - privilégio tão suave, exceção tão principal, que Deus a deu a um cristal, ao peixe, à fera, e a uma ave?"

Calderón de la Barca - Tradução de Jorge de Sena

Philos

Philos está próximo ao que entendemos por amizade ou afinidade. Em certo sentido, philos é exatamente o oposto de Eros. Enquanto Eros é passividade, Philos é atividade. É o amor amigo...


A um ausente

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

Carlos Drummond de Andrade

Eros

O gregos viam em Eros a causa do embevecimento e da entrega decorrente da afeição, isto é, designa aquilo que vem de fora e atinge a pessoa sem que ela tenha controle sobre o ocorrido. O amor erótico é marcadamente passional. Ser passional é sofrer de paixão. Paixão é a emoção que se sobrepõe à razão, à consciência crítica. No amor erótico, o sujeito vive um estado alterado de consciência. Essa alteração afeta o julgamento e a autocrítica. Eros - Amor - e Tanatos - Morte - predispõem os indivíduos à paixão, que tanto serve à criação - sexo- assim como à destruição - morte. Os deuses da paixão são tempestuosos e ligados ao presente. Eros e Tanatos são deuses das revoluções, das mudanças bruscas. São lados opostos de uma mesma moeda e isso nos faz crer que facilmente pode-se passar de um ao outro lado.


Fanatismo

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não es sequer razão do meu viver,
Pois que tu es já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu es como Deus: Princípio e Fim!..."

Florbela Espanca

Agape

É o amor benevolente que se contrapõe ao amor concupiscente - ou apego. No amor benevolente deseja-se fazer o bem ao outro. No amor concupiscente deseja-se possuir o bem que já existe no outro. Nas escrituras sagradas agape é traduzido como charitas - caridade . Considerada a maior das virtudes.

"Ainda que eu falasse línguas,
as dos homens e dos anjos,
se eu não tivesse o amor, seria como sino ruidoso ou como címbalo estridente.
Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência;

ainda que eu tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas,
se não tivesse o amor, eu não seria nada.

Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos,
ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse o amor, nada disso me adiantaria.

O amor é paciente, o amor é prestativo;
não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho.
Nada faz de inconveniente, não procura seu próprio interesse, não se irrita,
não guarda rancor.
Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade.
Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
O amor jamais passará.

As profecias desaparecerão, as línguas cessarão, a ciência também desaparecerá.
Pois o nosso conhecimento é limitado; limitada é também a nossa profecia.
Mas, quando vier a perfeição, desaparecerá o que é limitado.

Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança,
raciocinava como criança.
Depois que me tornei adulto, deixei o que era próprio de criança.

Agora vemos como em espelho e de maneira confusa;
mas depois veremos face a face.
Agora o meu conhecimento é limitado, mas depois conhecerei como sou conhecido.
Agora, portanto, permanecem estas três coisas:
a fé, a esperança e o amor.
A maior delas, porém, é o amor." (...)

I Coríntios, 1-13 - Bíblia Cristã

terça-feira, novembro 29, 2005

Foguete de Reis (ou A Guerra)

No derradeiro luar
O sol saiu
Um trovão avermelhado
O sol saiu
Solta fogo do passado
O sol saiu
No peito de quem tá vivo
Salva
Eu quero ver rodar
A planta que vingará
O sol saiu
O medo de lampião
O sol saiu
As dores de Iemanjá

O sol saiu

E a lua quilariou
E eu vi o meu amor
Dentro do canaviá

E haja guerra e haja guerra
Haja guerra no ar

Boa noite senhor e senhora
Eu cheguei agora
Me preste atenção
Nesse mundo de fogo e de guerra
O santo da terra
Tem calo na mão

Cordel do Fogo Encantado
letra de Lirinha em adaptação aos sambas de coco de Ivo Lopes
Arcoverde/Pernambuco/Brasil

O sonho

Quem contar um sonho que sonhou
não conta tudo o que encontrou
Contar um sonho é proibido
Eu sonhei um sonho com amor e uma janela e uma flor
uma fonte de água e o meu amigo
E não havia mais nada...
só nós, a luz, e mais nada...
Ali morou o amor,
Amor que trago em segredo num sonho que não vou contar
e cada dia é mais sentido
Amor, eu tenho amor bem escondido
num sonho que não sei contar e guardarei sempre comigo

Pedro Ayres Magalhães

domingo, novembro 27, 2005

Soneto 116

De almas sinceras a união sincera
Nada há que impeça: amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera,
Ou se vacila ao mínimo temor.
Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
É astro que norteia a vela errante,
Cujo valor se ignora, lá na altura.
Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfange não poupe a mocidade;
Amor não se transforma de hora em hora,
Antes se afirma para a eternidade.
Se isso é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.

William Shakespeare - tradução: Bárbara Heliodora

Amar e ser feliz

"Quanto mais envelhecia, quanto mais insípidas me pareciam as pequenas satisfações que a vida me dava, tanto mais claramente compreendia onde eu deveria procurar a fonte das alegrias da vida. Aprendi que ser amado não é nada, enquanto amar é tudo (...). O dinheiro não era nada, o poder não era nada.Vi tanta gente que tinha dinheiro e poder, e mesmo assim era infeliz. A beleza não era nada.Vi homens e mulheres belos, infelizes, apesar de sua beleza.Também a saúde não contava tanto assim. Cada um tem a saúde que sente. Havia doentes cheios de vontade de viver e havia sadios que definhavam angustiados pelo medo de sofrer. A felicidade é amor, só isto. Feliz é quem sabe amar. Feliz é quem pode amar muito. Mas amar e desejar não é a mesma coisa. O amor é o desejo que atingiu a sabedoria. O amor não quer possuir. O amor quer somente amar".

Herman Hesse

Chamo-te

Chamo-te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.

Peço-te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.

Há muitas coisas que não quero ver.

Peço-te que sejas o presente.
Peço-te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, novembro 26, 2005

Não Sei

Não sei... se a vida é curta
Ou longa demais para nós,
Mas sei que nada do que vivemos tem sentido,
Se não tocamos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:

Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo,
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja

Intensa,

Verdadeira,

Pura...

Enquanto durar.

Cora Coralina

Ausência

"Quero dizer-te uma coisa simples:
a tua ausência dói-me.
Refiro-me a essa dor que não magoa, que se limita à alma;
mas que não deixa, por isso,
de deixar alguns sinais -
um peso nos olhos, no lugar da tua imagem, e um vazio nas mãos.
Como se as tuas mãos lhes tivessem roubado o tato.
São estas as formas do amor,
podia dizer-te; e acrescentar que as coisas simples
também podem ser complicadas,
quando nos damos conta da diferença entre
o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz a tua memória;
e a realidade aproxima-me de ti,
agora que os dias correm mais depressa,
e as palavras ficam pressas numa refração de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de mim -
e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói."

Nuno Júdice

sexta-feira, novembro 25, 2005

Pensamentos parte II

"A primeira coisa que se oferece ao homem ao contemplar-se a si próprio, é seu corpo, isto é, certa parcela de matéria que lhe é peculiar. Mas, para compreender o que ela representa a fixá-la dentro de seus justos limites, precisa compará-la a tudo o que se encontra acima ou abaixo dela. Não se atenha, pois, a olhar para os objetos que o cercam, simplesmente, mas contemple a natureza inteira na sua alta e plena majestosidade. Considere esta brilhante luz colocada acima dele como uma lâmpada eterna para iluminar o universo, e que a Terra lhe apareça como um ponto na órbita ampla deste astro e maravilhe-se de ver que essa amplitude não passa de um ponto insignificante na rota dos outros astros que se espalham pelo firmamento. E se nossa vista aí se detém, que nossa imaginação não pare; mais rapidamente se cansará ela de conceber, que a natureza de revelar. Todo esse mundo visível é apenas um traço perceptível na amplidão da natureza, que nem sequer nos é dado a conhecer de um modo vago. Por mais que ampliemos as nossas concepções e as projetemos além de espaços imagináveis, concebemos tão somente átomos em comparação com a realidade das coisas. (...)"

Blaise Pascal - tradução: J. Brito Broca e Wilson Lousada.

Poemas para a Amiga (fragmentos)

(...)

2

Eu sei quando te amo:
é quando com teu corpo eu me confundo,
não apenas nesta mistura de massa e forma,
mas quando na tua alma eu me introduzo
e sinto que meu sangue corre em ti,
e tudo que é teu corpo
não é que um corpo meu
que se alongou de mim.
Eu sei quando te amo:
é quando eu te apalpo e não te sinto,
e sinto que a mim mesmo então me abraço,
a mim
que amo e sou um duplo,
eu mesmo
e o corpo teu pulsando em mim.

3

É tão natural
que eu te possua
é tão natural que tu me tenhas,
que eu não me compreendo
um tempo houvesse
em que eu não te possuísse
ou possa haver um outro
em que eu não te tomaria.
Venhas como venhas,
é tão natural que a vida
em nossos corpos se conflua,
que eu já não me consinto
que de mim tu te abstenhas
ou que meu corpo te recuse
venhas quando venhas.

4

E de ser tão natural
que eu me extasie
ao contemplar-te,
e de ser tão natural
que eu te possua,
em mim já não há como extasiar-me
tanto a minha forma
se integrou na forma tua.





As vezes em que eu mais te amei
tu o não soubeste
e nunca o saberias.

Sozinho a sós contigo
em mim mesmo eu te criava,
em mim te possuía

De onde vinhas nessas horas
em que inteira eu te envolvia,
nem eu mesmo o sei
e nunca o saberias

Contudo, em paz
eu recebia o carinho,
compungindo o recebia,
tranqüilo em meu silêncio
e tão tranqüilo e tão sozinho
que calmamente eu consentia:
- que ainda que muito me tardasse
mais ainda, um outro tanto, eu sempre esperaria.

(...)

Affonso Romano Sant'Anna

"Sou minha própria paisagem..."


Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.


Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.

Alberto Caeiro

quinta-feira, novembro 24, 2005

No país das últimas coisas

"Algo desaparece e, se você passar muito tempo sem pensar nele, nada haverá de trazê-lo de volta. Recordar não é um ato de vontade, afinal. É algo que ocorre a despeito de nós, e, quando há muita coisa mudando ao mesmo tempo, o cérebro vacila e os objetos lhe escapam. Às vezes, quando me vejo tateando em busca de um pensamento que fugiu, começo a evocar os velhos tempos, a me lembrar de quando eu era menina e toda família viajava de trem para o norte, nas férias de verão.

William, meu irmão mais velho, sempre deixava para mim o assento da janela e, a maior parte do tempo, eu não falava com ninguém, viajava com o rosto comprimido na vidraça, contemplando a paisagem, estudando o céu, as árvores e a água, enquanto o trem percorria os campos.

Achava tudo tão bonito, tão mais bonito que as coisas da cidade, e, todos os anos, dizia a mim mesma: "Anna, você nunca viu nada mais lindo. Tente se lembrar disso, tente memorizar as belas coisas que está vendo, para que fiquem para sempre com você, mesmo quando já não as possa ver".

Não creio que tenha olhado para o mundo com mais interesse que naquelas viagens ao norte. Queria que tudo me pertencesse, que tudo se tornasse parte do meu ser, e recordo que tentava guardar aquela beleza na memória, armazená-la para depois, quando me fosse realmente necessária.

O diabo é que não consegui. Tentava tanto, mas, de um modo ou de outro, sempre acabava me esquecendo e, por fim, só conseguia me lembrar do quanto tentara me lembrar. As coisas passavam muito depressa e, mal as via, já se haviam escapado, substituídas por outras que também desapareciam antes mesmo que chegasse a vê-las."

Paul Auster in: "No País das Últimas Coisas", tradução: Luiz Araújo

terça-feira, novembro 22, 2005

Um dos capítulos

"Ainda te falta dizer isto:
que nem tudo o que veio chegou por acaso.
Que há flores que de ti dependem,
que foste tu que deixaste algumas lâmpadas acesas.
Que há na brancura do papel alguns sinais de tinta indecifráveis.
E que esse é apenas um dos capítulosdo livro em que tudo se lê e nada está escrito."

Albano Martins

Alma luz



"Minha alma tem o peso da luz
Tem o peso da música
Tem o peso da palavra nunca dita
Tem o peso de uma lembrança
Tem o peso de uma saudade
Tem o peso de um olhar.

Pesa como pesa uma ausência e a lágrima que não se chorou
Tem o imaterial peso de uma solidão no meio de outras".

Clarice Lispector

Elementar

"Se fosse água, seria um rio largo, ora manso, ora caudaloso e turbulento, dificilmente navegável, as quedas de água surpreendentes e tempestuosas alternando com largos quilômetros de brandura a imitar o lago que a sua natureza lhe negava. Se fosse ar, seria vento, brando e refrescante agora, ciclônico e doloroso a imprevisíveis espaços, quase agreste não fôra a quebra súbita, a fragilidade avassaladora, mais forte do que as rajadas à solta. Se fosse terra, seria arável e morna em largas extensões, e de repente mortal como tempestade de areia num deserto sem fim à vista. Se fosse fogo, acabaria por consumir-se, sem contraponto para um desatino tão elementar".

Ana Roque in: Modus vivendi

Construindo a Armadura

Nego submeter-me ao medo
Que tira a alegria da minha liberdade
Que não me deixa arriscar,
Que me torna pequeno e mesquinho,
Que me amarra,
Que não me deixa ser directo e franco,
Que me persegue,
Que ocupa negativamente a minha imaginação,
Que pinta sempre visões sombrias.

No entanto,
não quero levantar barricadas
por medo do medo.
Quero viver,
não quero encarcerar-me.
Não quero ser amigável
por ter medo de ser sincero.
Quero pisar firme porque estou seguro,
não para encobrir o meu medo.

E quando me calo,
quero fazê-lo por amor,
não por temer as consequências
das minhas palavras.
Não quero acreditar em algo
só pelo medo de não acreditar.
Não quero filosofar por medo de que
algo possa atingir-me de perto.
Não quero dobrar-me
só porque tenho medo de não ser amável.
Não quero impor algo aos outros
pelo medo de que me possam impor algo;
por medo de errar, não quero tornar-me inativo.
Não quero fugir de volta para o velho, para o inaceitável,
por medo de não me sentir seguro novamente.
Não quero fazer-me de importante porque tenho
medo de ser, caso contrário, ignorado.
Por convicção e amor quero fazer o que faço
e deixar de fazer o que deixo de fazer.
Do medo quero arrancar o domínio e dá-lo ao amor.
E quero crer no reino que existe em mim.

Rudolf Steiner in: Modus vivendi

Sou Eu... (Que remédio!...)

...Em resposta ao vento... Quem sabe...

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro eléctrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio! ...

Álvaro de Campos

segunda-feira, novembro 21, 2005

O justo

Toda vez que um justo grita,

Um carrasco vem calar.

Quem não presta fica vivo

Quem é bom mandam matar.

Foi trabalhar para todos

E vejam o que lhe acontece:

Daqueles a quem servia,

Já nem um mais o conhece.

Quando a desgraça é profunda,

Que amigo se compadece?

Foi trabalhar para todos,

Mas por ele quem trabalha?

Tombado fica seu corpo

Nesta esquisita batalha.

Suas ações e seu nome,

Por onde a glória os espalha?

Por aqui passava um homem

(e como o povo se ria!)

Que reformava este mundo

De cima da montaria.

Por aqui passava um homem

(e como o povo se ria!)

Ele na frente falava

E atrás a sorte corria.

Por aqui passava um homem

(e como o povo se ria!)

Liberdade, ainda que tarde,

Nos prometia.


Cecília Meireles

Cabeça torta

"Fizeram a gente acreditar que amor mesmo, amor pra valer, só acontece uma vez, geralmente antes dos trinta anos.

Não contaram pra nós que amor não é acionado, nem chega com hora marcada.

Fizeram a gente acreditar que cada um de nós é a metade de uma laranja, e que a vida só ganha sentido quando encontramos a outra metade.

Não contaram que já nascemos inteiros, que ninguém em nossa vida merece carregar nas costas a responsabilidade de completar o que nos falta: a gente cresce através da gente mesmo. Se estivermos em boa companhia, é só mais agradável.

Fizeram a gente acreditar numa fórmula chamada "dois em um": duas pessoas pensando igual, agindo igual... e que era isso que funcionava. Não nos contaram que isso tem nome: anulação. Que só sendo indivíduos com personalidade própria é que poderemos ter uma relação saudável.

Fizeram a gente acreditar que casamento é obrigatório e que desejos fora de hora devem ser reprimidos.

Fizeram a gente acreditar que os bonitos e magros são mais amados, que os que transam pouco são caretas, que os que transam muito não são confiáveis, e que sempre haverá um chinelo velho para um pé torto.

Só não disseram que existe muito mais cabeça torta do que pé torto.

Fizeram a gente acreditar que só há uma fórmula para ser feliz, a mesma para todos, e os que escapam dela estão condenados à marginalidade.

Não nos contaram que estas fórmulas dão errado, frustram as pessoas, são alienantes, e que podemos tentar outras alternativas.

Ah, também não contaram que ninguém vai contar isso tudo pra gente. Cada um vai ter que descobrir sozinho. E aí, quando você estiver muito apaixonado por você mesmo, vai poder ser muito feliz e se apaixonar por alguém".

John Lennon (supostamente)

Canção para minha amiga

Quem é esta mulher que teima ser pedra?
(Que, oculta, é pétala, e que disto faz segredo)
Quem é esta mulher de tantas certezas?
Valquíria, espada em punho!,
A cavalgar sobre a verdade,
Com feraz determinação...

Quem é esta mulher, que se vê é pétala,
E se tenta ocultar em formas de pedra?
Quem é esta mulher, cuja oculta as delicadezas
De tardes outonais e beijos de amor,
E se faz aço frio, metal cortante?

Sol do meio-dia, que ilumina meus passos
Lentos pelas ruas cheias de gente e vazio,
Sob cuja mesma luz ela se encontra,
Aquece seu coração desse acalanto,
Dessa mansa ternura com que me banhas.

Sol suave, de suavidades amorosas repleto,
Sopra-lhe a brisa dos afetos,
Sussurra-lhe aos ouvidos teus carinhos
E o frio aço da máscara transmuta
Na doçura infinita das flores...

Sol amigo, que meu coração consola,
Que reparte calor por ímpios e puros,
Lava em tua luz a dor que adivinho
E adoça-lhe o peito, que sobre ele pesa
A mó imensa dos Destinos!

Toma em teus braços esta mulher,
Que em pedra se consome.
Acolhe, ampara, anima.
Enche-a de luz e seu coração serena,
Que de pétalas é feita, pressinto,
De meigos carinhos é que é feita.

Ricardo

domingo, novembro 20, 2005

Voar...

Que é voar?
É só subir no ar,
levantar da terra o corpo,
os pés?
Isso é que é voar?
Não.

Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre, leve, independente
é ter a alma separada de toda a existência
é não viver senão em não-vivência

E isso é voar?
Não.
Voar é humano
é transitório,
momentâneo...
Aquele que voa tem de pousar em algum lugar:
isso é partir
e
não voltar.

Ana Hatherly

Via-Láctea - soneto XIII

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: " Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: Amei para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".

Olavo Bilac

Serapião

Noite imensa
Deus baixou na Serra de Serapião e disse:
Brasil é meu
Mas não quero saber de muita bruxaria!

O mato encolheu. Visagens se apagaram
O silêncio visitou a floresta
Maria-cata-piolho benzeu-se no escuro

Deus então sem dizer nada reuniu distâncias
E começou a ouvir histórias de ai-me-acuda

A mãe-febre e o ploc-ti-ploc de lobisomem
juntando esqueletos
Queixas de mulher que não tinha útero

Deus ficou pensativo

Sapo acendeu os olhos no escuro
Escreveu silêncios

- Pois não faz mal. Então Brasil fica assim mesmo!
Podem fazer puçangas de mau-olhado
Usar figas contra quebrante
Mirongas e benzeduras
Pajé-bruxo pai-de-santo

Quero um Brasil com boi-catira
E festas de tirolé
São João com banhos de cheiro
E mandingas de chamar o mato

Brasil respondeu: louvado seja!

Então Deus com alma doce foi conversar com as árvores
O rio de águas insones se encostou num barranco
Piou no mato o murucututu

Sombras murcharam
No alto ainda ocupavam espaço algumas estrelas independentes
Deus mandou acender fogo.
Vintém-queimado!
Céu incendiou-se
Madrugada

Raul Bopp

Gente

"Existe gente-casa e gente apartamento. Não tem nada a ver com o tamanho: há pessoas pequenas que você sabe, só de olhar, que dentro têm dois pisos e escadaria, e pessoas grandes com um interior apertado, sala e quitinete. Também não tem nada a ver com caráter. Gente-casa não é necessariamente melhor do que gente-apartamento. A casa que alguns têm por dentro pode estar abandonada, a pessoa pode ser apenas uma fachada para uma armadilha ou um bordel. Já uma pessoa-apartamento pode ter um interior simples mas bem ajeitado e agradável. É muito melhor conviver com um dois-quartos, sala, cozinha e dependências do que com um labirinto.

Algumas pessoas não são apenas casas. São mansões. Com sótão e porão e tudo que eles comportam, inclusive baús antigos, fantasmas e alguns ratos. É fascinante quando alguém que você não imaginava ser mais do que um apartamento com uma suíte, de repente se revela um sobrado com pátio interno, adega e solario. É sempre arriscado prejulgar: você pode começar um relacionamento com alguém pensando que é um quarto-e-sala conjugado e se descobrir perdido em corredores escuros, e quando abre uma porta dá no quarto de uma tia louca.

Pensando bem, todo mundo tem uma casa por dentro, ou, no mínimo, bem lá no fundo, um porão. Ninguém é simples. Tudo, afinal, é só a ponta de um iceberg (salvo ponta de iceberg, que pode ser outra coisa) e muitas vezes quem aparenta ser apenas uma cobertura funcional com quarto, sala, lavabo e cozinha, só está escondendo suas masmorras".

Luís Fernando Veríssimo

Passagem da noite

É noite.
Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra),
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim,
o grito se calou,
fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento, noite nas águas, na pedra.

E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite,
não é morte,
é noite de sono espesso e sem praia.
Não é dor,
nem paz,
é perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar:
as distâncias, as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos se nos confia outra vez.

Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas, sinos, palavras;
que a terra prossegue seu giro,
e o tempo não murchou; não nos diluímos!
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado, o essencial é viver!

Carlos Drummond de Andrade

Coisas da terra

"Todas as coisas de que falo estão na cidade entre o céu e a terra.

São todas elas coisas perecíveis e eternas como o teu riso, a palavra solidária, minha mão aberta ou este esquecido cheiro de cabelo que volta e acende sua flama inesperada no coração de maio.

Todas as coisas de que falo são de carne como o verão e o salário.

Mortalmente inseridas no tempo, estão dispersas como o ar no mercado, nas oficinas, nas ruas, nos hotéis de viagem.

São coisas, todas elas, cotidianas, como bocas e mãos, sonhos, greves, denúncias, acidentes do trabalho e do amor. Coisas, de que falam os jornais às vezes tão rudes, às vezes tão escuras que mesmo a poesia as ilumina com dificuldade.

Mas é nelas que te vejo pulsando, mundo novo, ainda em estado de soluços e esperança."

Ferreira Gullar

sábado, novembro 19, 2005

Liberdade

"Deve existir nos homens um sentimento profundo que corresponde a essa palavra LIBERDADE, pois sobre ela se têm escrito poemas e hinos, a ela se tem até morrido com alegria e felicidade.

Diz-se que o homem nasceu livre, que a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade de outrem; que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar à própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é o oposto à fatalidade e à escravidão; nossos bisavós gritavam "Liberdade, Igualdade e Fraternidade!". Nossos avós cantaram: "Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil!"; nossos pais pediam: "Liberdade! Liberdade! - abre as asas sobre nós", e nós recordamos todos os dias que "o sol da liberdade em raios fúlgidos - brilhou no céu da Pátria..." - em certo instante.

Somos, pois criaturas nutridas de liberdade há muito tempo, com disposições de cantá-la, amá-la, combater e certamente morrer por ela.

Ser livre - como diria o famoso conselheiro... - é não ser escravo; é agir segundo a nossa cabeça e o nosso coração, mesmo tendo que partir esse coração e essa cabeça para encontrar um caminho... Enfim, ser livre é ser responsável, é repudiar a condição de autônomo e de teleguiado - é proclamar o triunfo luminoso do espírito. (Supondo que seja isso.)

Ser livre é ir mais além: é buscar outro espaço, outras dimensões, é ampliar a órbita da vida. É não estar acorrentado. É não viver obrigatoriamente entre quatro paredes.

Por isso, os meninos atiram pedras e soltam papagaios. A pedra inocentemente vai até onde o sono das crianças deseja ir. (Às vezes, é certo, quebra alguma coisa, no seu percurso...).

Os papagaios vão pelos ares até onde os meninos de outrora (muito de outrora!...) não acreditavam que se pudesse chegar tão simplesmente, com um fio de linha e um pouco de vento!...

Acontece, porém, que um menino, para empinar um papagaio, esqueceu-se da fatalidade dos fios elétricos e perdeu a vida.

E os loucos que sonharam sair de seus pavilhões, usando a fórmula do incêndio para chegarem à liberdade, morreram queimados, com o mapa da Liberdade nas mãos!...

São essas coisas tristes que contornam sombriamente aquele sentimento luminoso
da LIBERDADE. Para alcançá-la estamos todos os dias expostos à morte. E os tímidos preferem ficar onde estão, preferem mesmo prender melhor suas correntes e não pensar em assunto tão ingrato.

Mas os sonhadores vão para a frente, soltando seus papagaios, morrendo nos seus incêndios, como as crianças e os loucos. E cantando aqueles hinos que falam de asas, de raios fúlgidos - linguagem de seus antepassados, estranha linguagem humana, nestes andaimes dos construtores de Babel..."

Cecília Meireles

sexta-feira, novembro 18, 2005

Achava que não podia ser magoada.

Achava que não podia ser magoada;
achava que com certeza era
imune ao sofrimento —
imune às dores do espírito ou à agonia.

Meu mundo tinha o calor do sol de abril
Meus pensamentos, salpicados de verde e ouro.
Minha alma em êxtase, ainda assim
conheceu a dor suave e aguda que só o prazer
pode conter.

Minha alma planava sobre as gaivotas
que, ofegantes, tão alto se lançando,
lá no topo pareciam roçar suas asas
farfalhantes no teto azul do céu.

(Como é frágil o coração humano —
um latejar, um frêmito
— um frágil, luzente instrumento de cristal
que chora ou canta.)
Então de súbito meu mundo escureceu
E as trevas encobriram minha alegria.
Restou uma ausência triste e doída
Onde mãos sem cuidado tocaram e destruíram

minha teia prateada de felicidade.
As mãos estacaram, atônitas.
Mãos que me amavam, choraram ao ver
os destroços do meu firma-mento.

(Como é frágil o coração humano —
espelhado poço de pensamentos.
Tão profundo e trêmulo instrumento
de vidro, que canta ou chora.)

Sylvia Plath - tradução: Mônica Magnani Monte

quinta-feira, novembro 17, 2005

Um mito

"Mâyâ, em sânscrito é Ilusão! Essa entidade, digamos assim, conta o livro secreto de Dzyan e o Rig Veda (livros hindus sobre a origem do universo), aparece nos Mavantaras ou Noites de Brahmâ (deus hindu responsável pela ordem no universo). Quando tudo pára, quando Brahmâ dorme, é Mâyâ quem dá o movimento. Ela dá esse movimento captando a energia da respiração de Brahmâ que é a mesma energia que gera e rege o pensamento e a vida. Portanto, em todas as suas aparições, Mâyâ faz acontecer. É movimento!

Ilusão aparece porque tem sempre algo a revelar e para confirmar a existência de valores relativos em seres que se imaginam absolutos, ou de ou em atitudes tidas como verdadeiras e absolutas, suas revelações são isentas de regras. Ilusão quase nunca revela algo novo, apenas retém a aparência das coisas e deixa que tal aparência seja interpretada e, mesmo sendo concebida como verdade acidental e individual, com o hábito torna-se universal. Diante de Mâyâ, pode-se participar da vida em total liberdade, pode-se extrapolar aquilo que se vive a negar pois, aquilo que fere possui os mesmos elementos daquilo que cura.

Mâyâ dá, mas retém, é Tântrica! Não toma, apenas retém. É id, instinto... Coloca-se como algo que deseduca para se reeducar. Mâyâ é contradição! Faz amor (não escolhe ser) e, retendo a energia de seus amantes, a transforma em anéis, esses anéis retidos são apenas artifícios, pois em cada um deles não está apenas o troféu de suas conquistas, mas sim um pedaço da Mônada (como diria Leibnz) de cada ser que com ela esteve.

Em cada Pradaya (Dias de Brhamâ), Mâyâ despede-se do mundo sensível e com seu saquinho de anéis faz uma corrente, nessa corrente ela coloca pedaços de material celeste, o Éter (mesmo elemento que, como diriam os alquimistas medievais, compõe a alma humana) e deixa que eles se transformem em espaço e tempo. O tempo é o ôco do aro de cada anel e o espaço, o círculo que contém cada ôco. E o homem fica sempre preso nesse ôco e nesse círculo, indo e vindo... Indo e vindo... Imaginando-se livre mas vivendo a verdade habitual ... Até outra Noite de Brhamâ ..."

a sOoL!!

domingo, novembro 13, 2005

A solidão amiga

"A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão desligada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão...

O que mais você deseja é não estar em solidão... Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa... Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A noite estava perdida.

Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, “parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis“. A vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo de meditação: “Como se comporta a Sua Solidão?“ Minha solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela tem vida.

Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a que mais amo: “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você.“ Pare. Leia de novo. E pense. Você lamenta essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu jardim. Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga... Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond acha que sim:

“Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.!“

Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas!,(...) Eis o que ele escreveu sobre a sua solidão:

“Ó solidão! Solidão, meu lar!... Tua voz – ela me fala com ternura e felicidade! Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas abertas. Pois onde quer que estás, ali as coisas são abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes.Ali as palavras e os tempospoemas de todo o ser se abrem diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede para aprender de mim a falar.“
(...)
Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o seguinte: “As obras de arte são de uma solidão infinita.“ É na solidão que elas são geradas. (...) O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kiekeggard, um solitário que me faz companhia até hoje, observou que o início da infelicidade humana se encontra na comparação. Experimentei isso em minha própria carne.
(...)
A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira. "

Rubem Alves

O poeta inventa viagem, retorno e morre de saudade

Se for possível, manda-me dizer:

- É lua cheia. A casa está vazia -

Manda-me dizer, e o paraíso

Há de ficar mais perto, e mais recente

Me há de parecer teu rosto incerto.

Manda-me buscar se tens o dia

Tão longo como a noite. Se é verdade

Que sem mim só vês monotonia.

E se te lembras do brilho das marés

De alguns peixes rosados

Numas águas

E dos meus pés molhados, manda-me dizer:

- É lua nova -

E revestida de luz te volto a ver.

Hilda Hilst

sábado, novembro 12, 2005

Discurso da Servidão Voluntária.

"(...) Nossa natureza é de tal modo feita que os deveres comuns da amizade levam uma boa parte do curso de nossa vida; é razoável amar a virtude, estimar os belos feitos, reconhecer o bem de onde o recebemos, e muitas vezes diminuir nosso bem-estar para aumentar a honra e a vantagem daquele que se ama e que o merece. Em conseqüência, se os habitantes de um país encontraram algum grande personagem que lhes tenha dado provas de grande previdência para protegê-los, grande audácia para defendê-los, grande cuidado para governá-los, se doravante cativam-se em obedecê-lo e se fiam tanto nisso a ponto de lhe dar algumas vantagens, não sei se seria sábio tirá-lo de onde fazia o bem para colocá-lo num lugar onde poderá malfazer; mas certamente não poderia deixar de haver bondade em não temer o mal de quem só se recebeu o bem.

Mas, ó Deus, o que pode ser isso? Como diremos que isso se chama? Que infortúnio é esse? Que vício, ou antes, que vício infeliz ver um número infinito de pessoas não obedecer mas servir, não serem governadas mas tiranizadas, não tendo nem bens, nem parentes, mulheres nem crianças, nem sua própria vida que lhes pertença; aturando os roubos, os deboches, as crueldades, não de um exército, de um campo bárbaro contra o qual seria preciso despender seu sangue e sua vida futura, mas de um só; não de um Hércules nem de um Sansão, mas de um só homenzinho, no mais das vezes o mais covarde e feminino da nação, não acostumado à pólvora das batalhas mas com muito custo à areia dos torneios, incapaz de comandar os homens pela força mas acanhado para servir vilmente à menor mulherzinha. Chamaremos isso de covardia? Diremos que os que servem são covardes e moídos? É estranho, porém possível, que dois, três, quatro não se defendam de um; poder-se-á então dizer, com razão, que é falta de fibra. Mas se cem, mil homens agüentam um só, não se diria que não querem, que não ousam atacá-lo, e que não se trata de covardia e sim de desprezo ou desdém? Se não vemos cem, mil homens, mas cem países, mil cidades, um milhão de homens não atacarem um só, de quem o mais bem tratado de todos recebe esse mal de ser servo e escravo, como poderemos nomear isso? Será covardia? Ora, naturalmente em todos os vícios há algum limite além do qual não podem passar; dois podem temer um e talvez dez; mas mil, um milhão, mil cidades, se não se defendem de um, não é covardia, que não chega a isso, assim como a valentia não chega a que um só escale uma fortaleza, ataque um exército, conquiste um reino. Então, que monstro de vício é esse que ainda não merece o título de covardia, que não encontra um nome feio o bastante, que a natureza nega-se ter feito, e á língua se recusa nomear? (...)"

Etienne de la Boétie

Lutar com palavras

“As armas e a luta pertencem à atividade da violência, e a violência, distinguindo-se do poder, é muda; a violência tem início onde termina a fala. Quando usadas com o propósito de lutar, as palavras perdem sua qualidade de fala; transformam-se em clichês. O modo como os clichês instalaram-se em nossa linguagem cotidiana e em nossas discussões pode ser um bom indicador não só do ponto a que chegamos ao nos privarmos de nossa faculdade da fala, mas também de nossa presteza para usar meios de violência mais eficazes do que livros ruins (e somente livros ruins podem ser boas armas) para impor nossos argumentos.”

Hannah Arendt

sexta-feira, novembro 11, 2005

O Medo

pensa atento sobre o extrínseco
que te rodeia
se não o engenhares
corres a contingência da queda
corres a contingência da queda
se não o confeccionares
foge do alheio que não te quer
receia do alheio que te diz querer
pensa atento sobre o extrínseco
que te rodeia
abriga-te da mata desconhecida
abriga-te do poço sem fundo
abriga-te da estrada movimentada
pensa atento sobre o extrínseco
antes que ele pense sobre ti
queres o pó salgado do mar
queres o verde espesso da terra
mas tem diligência
queres o sangue que o vento traz
queres a ascendência do fogo
acaso queres a ascendência
mas ninguém viu o que há por detrás da taipa
tem diligência
ninguém viu o que há por detrás da taipa
ninguém viu o que há por detrás
ninguém viu o que há
ninguém viu
ninguém

Sara Costa

quinta-feira, novembro 10, 2005

Sobre canções...

"Muitas canções começam no fim, em cidades estranhas. Sei que a felicidade dos meses é ao meio e a força de um homem é ao meio da vida pura. Mas são muitas as canções que começam no fim. É no fim que secamente falam do ardor ao meio da cidade e da existência que se volta para si, de rosto – tremente e verde de sua ilusão. Canções cada vez mais no seu fim, tão secas voltadas imenso para trás. Para onde é todo o poder. Conheço horríveis canções cor de coisas transtornadas. Canções ainda repletas de peixes, flechas, dedos agudos abertos em torno do sexo. Começam no fim do seu pensamento. São para morrer na véspera, com um lento pavor no coração e o povo atônito por todos os lados. Porque o povo não sabe que um homem morre antes da sua última canção."

Herberto Helder

Gargalhada

Homem vulgar! Homem de coração mesquinho!
Eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármores baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
— e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas, Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas...

Escuta bem:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje essa música heróica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim.

Cecília Meireles

Aviso da lua que menstrua.

Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereia
Barriga cresce, explode humanidades
e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
mas é outro lugar, aí é que está:
cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita...
Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
que vai cair no mesmo planeta panela.
Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
transforma fato em elemento
a tudo refoga, ferve, frita
ainda sangra tudo no próximo mês.
Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
é que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
é que tô falando na "vera"
conheço cada uma, além de ser uma delas.
Você que saiu da fresta dela
delicada força quando voltar a ela.
Não vá sem ser convidado
ou sem os devidos cortejos...
Às vezes pela ponte de um beijo
já se alcança a "cidade secreta"
a Atlântida perdida.
Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
cai na condição de ser displicente
diante da própria serpente.
Ela é uma cobra de avental.
Não despreze a meditação doméstica.
É da poeira do cotidiano
que a mulher extrai filosofia
cozinhando, costurando
e você chega com a mão no bolso
julgando a arte do almoço: Eca!...
Você que não sabe onde está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
então esquece de morder devagar
esquece de saber curtir, dividir.
E aí quando quer agredir
chama de vaca e galinha.
São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
VACA é sua mãe. De leite.
Vaca e galinha...
ora, não ofende. Enaltece, elogia:
comparando rainha com rainha
óvulo, ovo e leite
pensando que está agredindo
que tá falando palavrão imundo.
Tá, não, homem.
Tá citando o princípio do mundo!

Elisa Lucinda

quarta-feira, novembro 09, 2005

Tão simples e tão normal...

"Damos festas, abandonamos as nossas famílias para vivermos sós no Canadá, batalhamos para escrever livros que não mudam o mundo apesar das nossas dádivas e dos nossos imensos esforços, das nossas absurdas esperanças. Vivemos as nossas vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns atiram-se de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginámos, embora todos, exceto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito mais negras e mais difíceis. Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais."

Michael Cunningham

terça-feira, novembro 08, 2005

Clown

Um dia.
Um dia, breve talvez.
Um dia eu arrancarei a âncora quem mantém meu navio longe dos mares.
Com aquela espécie de coragem necessária para ser nada e nada e nada,
eu me desprenderei daquilo que me parece estar indissoluvelmente próximo.
Eu o talharei, eu o derrubarei, eu o quebrarei e o farei degringolar.
Vomitarei meu miserável pudor, meus miseráveis arranjos e acorrentamentos
"de fio na agulha".
Esvaziado do abcesso de ser alguém, beberei novamente o espaço nutritivo.
Por ridículo, por degradação (o que é degradação?), por explosão, por vazio,
por uma total dissipação irrisão purgação, expulsarei de mim a forma
que se acredita muito bem atada, composta, coordenada, harmonizada ao
meu séquito e aos meus semelhantes, tão dignos, tão dignos, meus semelhantes.
Reduzido a uma humilde catástrofe, a um nivelamento perfeito como após um intenso medo.
Reconduzido aquém de toda medida ao meu verdadeiro lugar, ao lugar
ínfimo do qual não sei que idéia ambição me fez desertar.
Aniquilados o orgulho e a estima.
Perdido em um local distante (ou não), sem nome, sem identidade.


Palhaço, derrubando na risada, no grotesco, na gargalhada, o juízo que contra toda luminosidade
eu fiz para mim mesmo de minha impaciência.
Eu mergulharei.
Sem bóia no espírito-infinito subjacente aberto a todos, aberto eu mesmo
a um novo inacreditável orvalho
à força de ser ninguém
e raso...
e risível...

Henri Michaux - Tradução: Lenilde Freitas



segunda-feira, novembro 07, 2005

Bárbaros

"As civilizações costumam ter problemas com seus limites. Sempre há uma questão na fronteira, uma civilização diferente e portanto perigosa, ou um bárbaro sujo. Sempre há um bárbaro do outro lado, um autêntico marginal. Sempre há um marginal. Contam que o Papa Leo, para salvar Roma, concordou em ir ao acampamento de Átila, o rei dos Hunos, o Flagelo de Deus, o sujo, e pedir clemência. Pois os marginais nem sempre respeitam as margens e esse sujo rompera os limites do santo império romano e ameaçava um dos seus dois corações. Apesar da idade e do cansaço com a longa viagem o Santo Padre concentra toda a sua santidade num pedido a Deus para que o levite, a fim de que ele possa vencer a faixa de lama e esterco que separa sua liteira da boca da tenda de couro sem sacrificar sua dignidade, ou pelo menos suas sapatilhas. Mas Deus não o ouve e o Papa desliza para dentro da tenda onde Átila, que rói o que parece ser um fêmur humano, o recebe com uma salva de gases.

- Átila...
- Eu prefiro Flagelo.
- Flagelo, este é um encontro histórico. Você sabe o que é a História?
- Sei. Um monte de estrume. O que sobra da experiência depois que nós a digerimos. Lixo.
- Gosto do seu latim.

O huno mostra o fêmur seboso que acabou de limpar com os dentes.

- Preparei-me para o nosso encontro comendo um dos seus escolásticos. Ruct!
- O que foi isso?
- Um arroto. Estranho não ter saído em latim. Mas, nas suas erupções, todos os homens falam a mesma língua. As conferências de paz deviam ser entre os mais mal-educados de cada nação. Talvez seja por isso que nunca dão certo: sempre mandam os diplomatas. Mas você falava da História.
- Este encontro ficará nos anais da nossa História.
- Os hunos não têm anais. Não têm nem um alfabeto. Nossa História é o que contam os nossos velhos, e cada um mente mais do que o outro, para disfarçar o esquecimento. Entre os hunos, só os cavalos sabem escrever. Nossa História está nos seus rastros, no que eles deixam para trás. Lixo. Esqueletos, ruínas, mulheres estupradas e gado carneado. Isso quando não estupramos o gado e carneamos as mulheres. Este seu perfume...
- Extrato das glicínias de Roma.
- Ah, Roma.
- Você já a viu?
- De longe. Suspensa no ar. Uma miragem.
- A Rainha das Colinas...
- A Eterna...
- Toda a História do mundo numa cidade só. Todas as cidades numa cidade só...
- Breve a pilharemos. Com a devida reverência.
- Você não pode falar sério! Por trás desse exterior rude e dessas peles nodosas tem que haver um homem bom e razoável, com sentimentos nobres e um coração altivo.
- Um romano, você quer dizer. Sinto decepcioná-lo, Vossa Redolência, mas não há. Pelo menos não havia, da última vez que tomei banho.
- Roma não é um lugar. Roma é uma idéia, um parâmetro, um sonho, um triunfo do espírito. Roma é a memória e o futuro da humanidade!
- Prometemos só roubar o que tiver valor material. A literatura fica.
- Átila...
- Flagelo.
- Flagelo, poupe Roma. Me ofereço em seu lugar. Fique comigo e deixe Roma!
- Obrigado, eu já comi. E Vossa Fragrância me surpreende, fazendo apelos à consciência de um bárbaro. Eu não tenho consciência. Eu sou tudo que Roma não é. Se Roma é uma conquista da razão, foi essa inconsciência que ela conquistou.

E Átila bate no próprio peito, fazendo saltar outro arroto.

- Me atribuir uma consciência, Vossa Untuosidade - continua Átila - é diminuir a glória de Roma. Roma só é grande em contraste com seus inferiores. A não ser...

E Átila cutuca o Papa com a ponta do fêmur, convidando-o para uma cumplicidade de sujos.

- A não ser que vocês reconheçam que não são muito diferentes de nós. Hein? Hein? Por trás desse exterior bem lavado e desses panos bordados tem que haver um Átila adormecido. Vocês, apesar do extrato de glicínias, também não são flor que se cheire. Admita isso e eu admito ter uma consciência. Troco uma boa consciência por uma má.
- Não negamos nossa História.
- Negam, negam. Seus anais mentem mais do que os nossos velhos. Vocês civilizaram meio mundo a patadas, como nós. Só que nós não chamamos de civilização. Chamamos pelo seu nome exato. Talvez seja a vantagem de não ter uma escrita...
- Nos regeneremos! Hoje somos um império cristão.
- Isso depois de passar trezentos anos perseguindo os cristãos e atirando-os aos leões. Sempre suspeitei que os leões se enojaram primeiro.
- Está bem! Reconheço a nossa má consciência. Agora reconheça a sua boa.
- Feito!
- O quê?
- Concordo...
- Você poupará Roma?
- Claro que não.
- Mas...
- Vossa Ungüência, vocês levaram trezentos anos para se converter e querem que eu me converta em três minutos? Dêem-nos tempo. Ainda temos uns bons cem anos de pilhagem pela frente até termos o bastante para nos tornarmos civilizados, talvez até cristãos.
- Seu, seu...
- Pode dizer. Bárbaro. Tenho a pele grossa, sem falar nos cascões de sujeira. Ruct! Epa. O seu gramático não me fez bem. Volte para Roma e diga que eu sou pior do que ela pensa, mais sujo, o que só aumentará sua virtude. E que ela não se preocupe: sempre haverá um bárbaro rondando as suas fronteiras para sua maior glória e indignação. Sempre há."

Luís Fernando Veríssimo

Para o silêncio conjugar

Conjuguei verbos
para lhe alcançar
durante tantos dias
imaginei versos e melodias
para lhe dar asas
e voar para cá
aonde meus olhos procuram
insensatos
razão para seguir
longe....
e esperei você pousar
durante meu sono
amanhecendo sem pesadelos
Suas palavras
soltas em um pedaço
de qualquer coisa
me farão ouvir sua voz
Sua voz que ecoando
em meu abismo
de sonhos infantis
me emudece
e declamo poesias
em silêncio
para você

Cinthia Souza Kaneyuki

Indisíveis

O meu primeiro amor e eu sentávamos numa pedra
Que havia num terreno baldio entre as nossas casas.
Falávamos de coisas bobas,
Isto é, que a gente grande achava bobas
Como qualquer troca de confidências entre crianças de cinco anos.

Crianças...

Parecia que entre um e outro nem havia ainda separação de sexos
A não ser o azul imenso dos olhos dela,
Olhos que eu não encontrava em ninguém mais,
Nem no cachorro e no gato da casa,
Que tinham apenas a mesma fidelidade sem compromisso
E a mesma animal - ou celestial - inocência,
Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu:

Não, não importava as coisas bobas que diséssemos.
Éramos um desejo de estar perto, tão perto
Que não havia ali apenas duas encantadas criaturas
Mas um único amor sentado sobre uma tosca pedra,
Enquanto a gente grande passava, caçoava, ria-se, não sabia
Que eles levariam procurando uma coisa assim por toda a sua vida...

Mário Quintana

domingo, novembro 06, 2005

A posição do homem no cosmos

“Um dos mais belos frutos da construção sucessiva da natureza humana a partir dos estágios subordinados da existência é que se pode mostrar com que necessidade interna o homem, no mesmo instante em que se tornou homem através da consciência do mundo e de si próprio e através da objetivação mesma de sua natureza psíquica – os traços específicos fundamentais do espírito – , também precisou apreender a idéia maximamente formal de um ser supramundano infinito e absoluto. Se o homem – isto pertence com efeito à sua essência, é o ato da própria gênese do homem – se destacou um dia do conjunto da natureza e tornou-o seu ‘objeto’, então ele precisa como que se voltar aterrorizado e perguntar: ‘onde me encontro, afinal, mesmo? Qual é, afinal, minha posição?’ Ele não pode mais dizer propriamente: ‘eu sou uma parte do mundo, sou envolvido por ele’ – pois o ser atual de seu espírito e de sua pessoa é superior até mesmo às formas do ser deste ‘mundo’ em espaço e tempo.”

Max Scheler

Encantamento de Maria...

"A Virgem está pálida e olha para o menino. O que seria necessário pintar neste rosto é um encantamento ansioso que não apareceu senão uma vez sobre uma figura humana. Porque Cristo é o seu menino: a carne da sua carne, o fruto das suas entranhas. Cresceu nela durante nove meses e dar-lhe-á o seu seio (...) e, por momentos, a tentação é tão forte que ela esquece que ele é Deus. Aperta-o nos seus braços e diz: 'Meu pequenino.'

Mas noutros momentos ela suspende esse movimento e pensa: 'Deus está aqui.' E fica possuída pelo horror religioso, por este Deus mudo, por esta criança terrificante. Todas as mães ficam assim suspensas, por um momento, diante deste fragmento rebelde da sua carne que é o seu filho, sentem-se em exílio diante desta vida nova que se faz a partir da sua e habitadas por pensamentos estranhos. Nenhuma criança, porém, foi tão cruelmente e tão rapidamente arrancada à mãe: aquela criança é Deus e ultrapassa sempre tudo o que Maria possa imaginar.

Penso que também há momentos, rápidos e fugidios, nos quais ela sente, ao mesmo tempo, que Cristo é seu filho e que ele é Deus. Ao olhar para ele, pensa: 'este Deus é meu menino. Esta carne divina é a minha carne. Ele é feito de mim, tem os meus olhos e esta forma da sua boca é a forma da minha. Parece-se comigo. Ele é Deus e parece-se comigo.'

Nenhuma mulher teve, desse modo, o seu Deus só para ela, um Deus pequenino que se pode tomar nos braços e cobri-lo de beijos, um Deus quentinho que sorri e que respira, um Deus que se pode tocar e que ri! É num destes momentos que eu pintaria Maria, se fosse pintor."

Jean Paul Sartre - Tradução de Frei Bento Domingues

Pense!

"Há sempre pessoas prontas a dizer-nos o que queremos, a explicar-nos como nos vão dar essas coisas e a mostrar-nos no que devemos acreditar. As convicções são contagiosas e é possível convencer as pessoas de praticamente tudo. Geralmente, estamos dispostos a pensar que os nossos hábitos, as nossas convicções, a nossa religião e os nossos políticos são melhores que os delas (...)
É por causa de idéias sobre o que os outros são, ou quem somos nós, ou o que os nossos interesses e direitos exigem que fazemos guerras ou oprimimos os outros de consciência tranqüila, ou até aceitamos por vezes sermos oprimidos.
Quando estas convicções implicam no sono da razão, o despertar crítico é o antídoto.
A reflexão permite-nos recuar, ver que talvez a nossa perspectiva sobre uma dada situação esteja distorcida, ou seja, cega, ou, pelo menos, ver se há argumentos a favor dos nossos hábitos, ou se é tudo meramemte subjetivo. Fazer isto bem é pôr em prática mais alguma engenharia conceitual. A reflexão pode ser encarada como uma coisa perigosa, visto que não podemos saber à partida onde nos conduzirá."

Simon Blackburn