"(...) Nossa natureza é de tal modo feita que os deveres comuns da amizade levam uma boa parte do curso de nossa vida; é razoável amar a virtude, estimar os belos feitos, reconhecer o bem de onde o recebemos, e muitas vezes diminuir nosso bem-estar para aumentar a honra e a vantagem daquele que se ama e que o merece. Em conseqüência, se os habitantes de um país encontraram algum grande personagem que lhes tenha dado provas de grande previdência para protegê-los, grande audácia para defendê-los, grande cuidado para governá-los, se doravante cativam-se em obedecê-lo e se fiam tanto nisso a ponto de lhe dar algumas vantagens, não sei se seria sábio tirá-lo de onde fazia o bem para colocá-lo num lugar onde poderá malfazer; mas certamente não poderia deixar de haver bondade em não temer o mal de quem só se recebeu o bem.
Mas, ó Deus, o que pode ser isso? Como diremos que isso se chama? Que infortúnio é esse? Que vício, ou antes, que vício infeliz ver um número infinito de pessoas não obedecer mas servir, não serem governadas mas tiranizadas, não tendo nem bens, nem parentes, mulheres nem crianças, nem sua própria vida que lhes pertença; aturando os roubos, os deboches, as crueldades, não de um exército, de um campo bárbaro contra o qual seria preciso despender seu sangue e sua vida futura, mas de um só; não de um Hércules nem de um Sansão, mas de um só homenzinho, no mais das vezes o mais covarde e feminino da nação, não acostumado à pólvora das batalhas mas com muito custo à areia dos torneios, incapaz de comandar os homens pela força mas acanhado para servir vilmente à menor mulherzinha. Chamaremos isso de covardia? Diremos que os que servem são covardes e moídos? É estranho, porém possível, que dois, três, quatro não se defendam de um; poder-se-á então dizer, com razão, que é falta de fibra. Mas se cem, mil homens agüentam um só, não se diria que não querem, que não ousam atacá-lo, e que não se trata de covardia e sim de desprezo ou desdém? Se não vemos cem, mil homens, mas cem países, mil cidades, um milhão de homens não atacarem um só, de quem o mais bem tratado de todos recebe esse mal de ser servo e escravo, como poderemos nomear isso? Será covardia? Ora, naturalmente em todos os vícios há algum limite além do qual não podem passar; dois podem temer um e talvez dez; mas mil, um milhão, mil cidades, se não se defendem de um, não é covardia, que não chega a isso, assim como a valentia não chega a que um só escale uma fortaleza, ataque um exército, conquiste um reino. Então, que monstro de vício é esse que ainda não merece o título de covardia, que não encontra um nome feio o bastante, que a natureza nega-se ter feito, e á língua se recusa nomear? (...)"
Etienne de la Boétie
Mas, ó Deus, o que pode ser isso? Como diremos que isso se chama? Que infortúnio é esse? Que vício, ou antes, que vício infeliz ver um número infinito de pessoas não obedecer mas servir, não serem governadas mas tiranizadas, não tendo nem bens, nem parentes, mulheres nem crianças, nem sua própria vida que lhes pertença; aturando os roubos, os deboches, as crueldades, não de um exército, de um campo bárbaro contra o qual seria preciso despender seu sangue e sua vida futura, mas de um só; não de um Hércules nem de um Sansão, mas de um só homenzinho, no mais das vezes o mais covarde e feminino da nação, não acostumado à pólvora das batalhas mas com muito custo à areia dos torneios, incapaz de comandar os homens pela força mas acanhado para servir vilmente à menor mulherzinha. Chamaremos isso de covardia? Diremos que os que servem são covardes e moídos? É estranho, porém possível, que dois, três, quatro não se defendam de um; poder-se-á então dizer, com razão, que é falta de fibra. Mas se cem, mil homens agüentam um só, não se diria que não querem, que não ousam atacá-lo, e que não se trata de covardia e sim de desprezo ou desdém? Se não vemos cem, mil homens, mas cem países, mil cidades, um milhão de homens não atacarem um só, de quem o mais bem tratado de todos recebe esse mal de ser servo e escravo, como poderemos nomear isso? Será covardia? Ora, naturalmente em todos os vícios há algum limite além do qual não podem passar; dois podem temer um e talvez dez; mas mil, um milhão, mil cidades, se não se defendem de um, não é covardia, que não chega a isso, assim como a valentia não chega a que um só escale uma fortaleza, ataque um exército, conquiste um reino. Então, que monstro de vício é esse que ainda não merece o título de covardia, que não encontra um nome feio o bastante, que a natureza nega-se ter feito, e á língua se recusa nomear? (...)"
Etienne de la Boétie
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