"Apurar, ó céus, pretendo, já que me tratais assim, que delito cometi contra vós outros, nascendo; que, se nasci, já entendo qual delito hei cometido: bastante causa há servido vossa justiça e rigor, pois que o delito maior do homem é ter nascido.
E só quisera saber, para apurar males meus (deixando de parte, ó céus, o delito de nascer), em que vos pude ofender por me castigardes mais? Não nasceram os demais? Pois se eles também nasceram, que privilégios tiveram como eu não gozei jamais?
Nasce a ave, e com as graças que lhe dão beleza suma, apenas é flor de pluma, ou ramalhete com asas, quando as etéreas plagas corta com velocidade, negando-se à piedade do ninho que deixa em calma: só eu, que tenho mais alma, tenho menos liberdade?
Nasce a fera, e com a pele que desenham manchas belas, apenas signo é de estrelas (graças ao douto pincel), quando atrevida e cruel, a humana necessidade lhe ensina a ter crueldade, monstro de seu labirinto:
Só eu, com melhor instinto, tenho menos liberdade?
Nasce o peixe, e não respira, aborto de ovas e lamas, e apenas baixel de escamas por sobre as ondas se mira, quando a toda a parte gira, num medir da imensidade com a tanta capacidade que lhe dá o centro frio:
Só eu, com mais alvedrio, tenho menos liberdade?
Nasce o arroio, uma cobra que entre as flores se desata, e apenas, serpe de prata, por entre as flores se desdobra, já, cantor, celebra a obra da natura em piedade que lhe dá a majestade do campo aberto à descida:
Só eu que tenho mais vida, tenho menos liberdade?
Em chegando a esta paixão um vulcão, um Etna feito, quisera arrancar do peito pedaços do coração.
Que lei, justiça, ou razão, nega aos homens - ó céu grave! - privilégio tão suave, exceção tão principal, que Deus a deu a um cristal, ao peixe, à fera, e a uma ave?"
Calderón de la Barca - Tradução de Jorge de Sena
E só quisera saber, para apurar males meus (deixando de parte, ó céus, o delito de nascer), em que vos pude ofender por me castigardes mais? Não nasceram os demais? Pois se eles também nasceram, que privilégios tiveram como eu não gozei jamais?
Nasce a ave, e com as graças que lhe dão beleza suma, apenas é flor de pluma, ou ramalhete com asas, quando as etéreas plagas corta com velocidade, negando-se à piedade do ninho que deixa em calma: só eu, que tenho mais alma, tenho menos liberdade?
Nasce a fera, e com a pele que desenham manchas belas, apenas signo é de estrelas (graças ao douto pincel), quando atrevida e cruel, a humana necessidade lhe ensina a ter crueldade, monstro de seu labirinto:
Só eu, com melhor instinto, tenho menos liberdade?
Nasce o peixe, e não respira, aborto de ovas e lamas, e apenas baixel de escamas por sobre as ondas se mira, quando a toda a parte gira, num medir da imensidade com a tanta capacidade que lhe dá o centro frio:
Só eu, com mais alvedrio, tenho menos liberdade?
Nasce o arroio, uma cobra que entre as flores se desata, e apenas, serpe de prata, por entre as flores se desdobra, já, cantor, celebra a obra da natura em piedade que lhe dá a majestade do campo aberto à descida:
Só eu que tenho mais vida, tenho menos liberdade?
Em chegando a esta paixão um vulcão, um Etna feito, quisera arrancar do peito pedaços do coração.
Que lei, justiça, ou razão, nega aos homens - ó céu grave! - privilégio tão suave, exceção tão principal, que Deus a deu a um cristal, ao peixe, à fera, e a uma ave?"
Calderón de la Barca - Tradução de Jorge de Sena
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