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Música Brasileira

"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

sábado, dezembro 31, 2005

Amar

"Já se disse que as grandes idéias vêm ao mundo mansamente, como pombas. Talvez, então, se ouvirmos com atenção, escutaremos um discreto bater de asas, o suave acordar da vida e da esperança. Alguns dirão que tal esperança jaz numa nação; outros, num homem. Eu creio, ao contrário, que ela é despertada, revivificada, alimentada por milhões de indivíduos solitários, cujos atos e trabalho, diariamente, negam as fronteiras e as implicações mais cruas da história. Como resultado, brilha por um breve momento a verdade, sempre ameaçada, de que cada e todo homem, sobre a base de seus próprios sofrimentos e alegrias, constrói para todos."

Albert Camus

Campo de flores

Deus
me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus - ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou,mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus
me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram de mim,
o sumo se espremeu para fazer um vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje
tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados,no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.

Mas,
porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, dezembro 30, 2005

Boa justiça

PhilippeBerger-a sOoL!!
É a quente lei dos homens
Da uva eles fazem vinho

E do carvão fazem fogo
E dos beijos fazem homens

É a dura lei dos homens
Guardar-se intacto apesar

Das guerras e da miséria
Tantos perigos de morte

É a doce lei dos homens
Transformar a água em luz

O sonho em realidade
Inimigos em irmãos



Uma lei antiga e nova
Que se vai aperfeiçoando

Do coração da criança
Até a razão suprema

Paul Éluard tradução: José Paulo Paes

As Máscaras

NikolaiBachelet-a sOoL!!Piedade para estes séculos
e seus sobreviventes
alegres ou maltratados,
o que não fizemos
foi por culpa de ninguém,
faltou aço:
nós o gastamos em tanta inútil destruição,
não importa no balanço nada disto:
os anos padeceram
de pústulas e guerras,
anos desfalecentes quando tremeu
a esperança no fundo das garrafas inimigas.
Muito bem,
falaremos alguma vez,
algumas vezes, com uma andorinha
para que ninguém escute: tenho vergonha,
temos o pudor dos viúvos: morreu a verdade
e apodreceu em tantas fossas: é melhor recordar
o que vai acontecer: neste ano nupcial
não há derrotados:
coloquemo-nos, cada um,
máscaras vitoriosas.

Pablo Neruda

Trecho de " O Anticristo"

"(...) Com isto concluo e pronuncio meu julgamento: eu condeno o cristianismo; lanço contra a Igreja cristã a mais terrível acusação que um acusador já teve em sua boca. Para mim ela é a maior corrupção imaginável; busca perpetrar a última, a pior espécie de corrupção. A Igreja cristã não deixou nada intocado pela sua depravação; transformou todo valor em indignidade, toda verdade em mentira e toda integridade em baixeza de alma. Que se atrevam a me falar sobre seus benefícios “humanitários”! Suas necessidades mais profundas a impedem de suprimir qualquer miséria; ela vive da miséria; criou a miséria para fazer−se imortal... Por exemplo, o verme do pecado: foi a Igreja que enriqueceu a humanidade com esta desgraça! (...) essa idéia explosiva terminou por converter−se em revolução,idéia moderna e princípio de decadência de toda ordem social – isso é dinamite cristã... Os “humanitários” benefícios do cristianismo! Fazer do caráter humano uma autocontradição, uma arte da autopoluição, um desejo de mentir a todo custo, uma aversão e desprezo por todos instintos bons e honestos! Para mim são esses os “benefícios” do cristianismo! – O parasitismo como única prática da Igreja; com seus ideais “sagrados” e anêmicos, sugando da vida todo o sangue, todo o amor, toda a esperança; o além como vontade de negação de toda a realidade; a cruz como símbolo representante da conspiração mais subterrânea que jamais existiu – contra a saúde, a beleza, o bem−estar, o intelecto, a bondade da alma – contra a própria vida (...)"

Friedrich W. Nietzsche tradução de: André Díspore Cancian

Sobre Deus

"Deus,
ou quer impedir os males
e não pode,
ou pode e não quer,
ou não quer nem pode,
ou quer e pode.
Se quer e não pode,
é impotente:
o que é impossível em Deus.
Se pode e não quer,
é invejoso:
o que, do mesmo modo, é contrário a Deus.
Se nem quer nem pode,
é invejoso e impotente:
portanto,
nem sequer é Deus.
Se pode e quer,
o que é a única coisa compatível com Deus,
donde provém então
a existência
dos males?
Por que razão é que não os impede?"

Epicuro

Sobre a Liberdade

PhilippeBerger-a sOoL!!
"(...) Mas não se deve presumir que o pensamento inteligente não possa desempenhar nenhum papel na formação da meta e de juízos éticos. Quando alguém se dá conta de que certo meio seria útil para a consecução de um fim, isto faz com que o próprio meio se torne um fim.

A inteligência elucida para nós a inter-relação entre meios e fins. O mero pensamento não pode, contudo, nos dar uma consciência dos fins últimos e fundamentais. Elucidar esses fins e valores fundamentais é engastá-los firmemente na vida emocional do indivíduo; parece-me, precisamente, a mais importante função que a religião tem a desempenhar na vida social do homem.

E se alguém pergunta de onde provém a autoridade desses fins fundamentais, já que eles não podem ser formulados e justificados puramente pela razão, só há uma resposta: eles existem numa sociedade saudável na forma de tradições vigorosas, que agem sobre a conduta, as aspirações e os juízos dos indivíduos; eles existem, isto é, vivem dentro dela, sem que seja preciso encontrar justificação para sua existência.

Nascem, não através da demonstração, mas da revelação, por meio de personalidades excepcionais. Não se deve tentar justificá-los, mas antes, sentir, simples e claramente, sua natureza. Os mais elevados princípios para nossas aspirações e juízos nos são dados pela tradição religiosa judáico-cristã. Trata-se de uma meta muito elevada, que, com nossos parcos poderes, só podemos atingir de maneira muito insatisfatória, mas que da um sólido fundamento a nossas aspirações e avaliações.

Se quiséssemos tirar essa meta de sua forma religiosa e considerar apenas seu aspecto puramente humano, talvez pudéssemos formulá-la assim: desenvolvimento livre e responsável do indivíduo, de modo que ele possa por suas capacidades, com liberdade e alegria a serviço de toda a humanidade. (...)"


Albert Einstein

A vida é poesia

BrunoAnedda-a sOoL!!
A
vida
humana
- na verdade
toda a vida -
É poesia.
Nós
a vivemos
inconscientemente,
dia
a
dia,
fragmento
a
fragmento
mas
na sua
totalidade inviolável
Ela
é
que
nos
vive!

Lou Andreas-Salomé

" Uma plenitude mais acabada..."

"Distingue-se entre os humanos aqueles que se sentem divididos em um passado e um futuro e aqueles que vivem o presente com cada vez mais densidade, sempre mais plenitude. Os orientais acham natural insistir menos sobre a morte do que se passa do que sobre a perfeição do que se acaba, como aprofundamento da realidade. Nós, ao contrário, começamos a ver aquilo que nos chega, apenas sob o aspecto sempre mais sinistro da morte - como tudo o que se observa de um olhar exterior, logo mortífero." E um pouco mais adiante: "Sempre não tive a idéia fixa de que a velhice me traria muito? Em meus jovens anos escrevi em algum lugar: primeiro nós vivemos nossa juventude, em seguida nossa juventude vive em nós. Não sei bem, ainda hoje, o que eu queria dizer com isso outrora. Mas eu tinha realmente medo de não atingir a idade de viver esta experiência; eu o sabia profundamente, uma longa vida, com todas as suas dores, vale ser vivida ... Claro, o valor da vida pode nos ficar escondido pelos desgastes sofridos pela nossa carne, nosso espírito ... do mesmo modo que a juventude mais empreendedora pode se ver entravada em sua felicidade e em seu sucesso, por um fatal concurso de circunstâncias; mas, por além das perdas, a velhice adquire muito mais que a famosa aptidão à serenidade e à lucidez: ela permite que se chegue a uma plenitude mais acabada."

Lou Andreas-Salomé

quinta-feira, dezembro 29, 2005

"Uma crítica da concepção cristã de Deus..."

ByungHunMin

"Uma crítica da concepção cristã de Deus conduz inevitavelmente à mesma conclusão. – Uma nação que ainda acredita em si mesma possui seu próprio Deus. Nele são honradas as condições que a possibilitam sobreviver, suas virtudes – projeta o prazer que possui em si mesma, seu sentimento de poder, em um ser ao qual pode agradecer por isso. Quem é rico lhe prodigaliza sua riqueza; uma nação orgulhosa precisa de um Deus ao qual pode oferecer sacrifícios... A religião, dentro desses limites, é uma forma de gratidão. O homem é grato por existir: para isso precisa de um Deus. – Tal Deus precisa ser tanto capaz de beneficiar quanto de prejudicar; deve ser capaz de representar um amigo ou um inimigo – é admirado tanto pelo bem quanto pelo mal que causa. Castrar esse Deus, contra toda a natureza, transformando−o em um Deus somente bondade, seria contrário à inclinação humana. A humanidade necessita igualmente de um Deus mau e de um Deus bom; não deve agradecer por sua própria existência à mera tolerância e à filantropia... Qual seria o valor de um Deus que desconhecesse o ódio, a vingança, a inveja, o desprezo, a astúcia, a violência? Que talvez nem sequer tenha experimentado os arrebatadores ardentes da vitória e da destruição? Ninguém entenderia tal Deus: por que alguém o desejaria? – Sem dúvida, quando uma nação está em declínio, quando sente que a crença em seu próprio futuro, sua esperança de liberdade estão se esvaindo, quando começa a enxergar a submissão como primeira necessidade e como medida de autopreservação, então precisa também modificar seu Deus. Ele então se torna hipócrita, tímido e recatado; aconselha a “paz na alma”, a ausência de ódio, a indulgência, o “amor” aos amigos e aos inimigos. Torna−se um moralizador por excelência; infiltra−se em toda virtude privada; transforma−se no Deus de todos os homens; torna−se um cidadão privado, um cosmopolita... Noutros tempos representava um povo, a força de um povo, tudo que em suas almas havia de agressivo e sequioso de poder; agora é simplesmente o bom Deus... Na verdade não há outra alternativa para os Deuses: ou são a vontade de poder – no caso de serem os Deuses de uma nação – ou a inaptidão para o poder – e neste caso precisam ser bons".

Friedrich W. Nietzsche

quarta-feira, dezembro 28, 2005

Poema pouco original do medo

sophietmains-s sOoL!!O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até
(cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis

(o medo vai ter heróis!)

costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza
a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O'Neill

Uma pausa que se prolonga...

MichaelKenna-a sOoL!!
"Um dia pensarei que passei por ti como passam os pássaros por este campo que há de tornar-se seco, no inverno; e que a primavera que vivemos não há de voltar, ao contrário dessa que todos os anos sucede ao inverno, trazendo consigo esses pássaros de que me lembro ao pensar que estou sem ti, agora que todas as viagens chegaram ao fim, e uma pausa se prolonga até se tornar definitiva.

Mas não é por pensar isso que me sinto longe de ti: o que talvez me faça sofrer, como se o sofrimento não fosse uma parte do amor, e se substitua a ele, quando o tempo impõe as suas regras, e nos lembra que dependemos de pequenas coisas para que tudo mude, de um dia para o outro, tornando-nos outros do que fomos, embora continuemos a sentir o que sempre sentimos.

Então, dirás, alguma coisa valeu a pena?

E eu respondo que a migração dos pássaros é um sintoma de que os hábitos não mudam quando queremos; e a vontade dos que querem ficar leva-os à morte, como se entre morrer e amar houvesse um elo que não sabemos de onde vem, mas se manifesta na melancolia de um bater de asas, sob os ramos da árvore, quando o céu de chuva impede o voo para cima dos seus ramos. Mesmo que peguemos nessa ave, de pouco servirá: o seu destino foi escolhido por ela, e quando isso acontece nada podemos fazer. Debate-se, procurando escapar aos dedos que a prendem; e esse gesto leva-a para onde não lhe chegamos, a não ser com o olhar, sabendo que no dia seguinte o ramo irá ficar vazio.

Assim, voltei ao café onde tantas vezes te esperei: e não havia ninguém na mesa, como se a maldição tivesse tomado conta do lugar.

É do inverno, disse o patrão, ninguém sai de casa com este tempo.

Não lhe dei outras razões. O que eu sei, levaste-o contigo, neste inverno em que nem os pássaros querem ficar".

Nuno Júdice

Livre

Quem marca uma fronteira
Aquela nuvem
a asa que é a sua sombra
onde mora?

Sob as mordaças
calam-se as palavras
mas ninguém te cala
pensamento.

Quem manda à semente
não germines
ao fruto dela
que o não seja?

Amarram-se os pulsos
com algemas
mas ninguém te amarra
pensamento.

Quem impõe ao dia
que não nasça
ao sol que é sua fonte
que não brilhe?

Fecham-se as janelas
com tapumes
mas ninguém te cega
pensamento.

Quem diz ao amor
é impossível
à lembrança que é seu laço
que o não seja?

Separam-se os amantes
na distância
ninguém te roubará
meu pensamento.

Joaquim Namorado

Sobre a mentira

"(...) Não é somente a dificuldade e a canseira que o homem experimenta ao perseguir a verdade, nem sequer o fato de, uma vez encontrada, se impor aos pensamentos humanos, o que leva a conceder às mentiras os maiores favores; é sim, um natural mas corrompido amor da própria mentira. Uma das últimas escolas dos Gregos examinou esta questão, mas deteve-se a pensar no que leva o homem a armar as mentiras, quando não o faz por prazer, como os poetas, ou por utilidade, como os mercadores, mas pelo próprio mentir.

Não sei como dizê-lo, mas a verdade é uma luz nua e crua que não mostra as máscaras, as cegadas e os cortejos do mundo com metade da altivez e da graciosidade com que aparecem iluminados pelos candelabros. A verdade pode, talvez, atingir o preço da pérola que mais brilha durante o dia, mas não alcança o preço do diamante ... que tanto mais brilha quanto mais variadas forem as luzes. Com a mistura da mentira mais se acresce o prazer. Haverá alguém para duvidar que, tirando ao espírito humano as opiniões vãs, as esperanças lisonjeiras, as falsas valorações, as imaginações pessoais, etc., para a maior parte da gente tudo o mais não seria senão uma espécie de pobres coisas contraídas, cheias de melancolia e de indisposição, enfim, desagradáveis? (...)"

Francis Bacon

terça-feira, dezembro 27, 2005

"Esforço ou Inércia"

"(...) Somos aquilo que nosso mundo nos convida a ser, e as feições fundamentais de nossa alma são impressas nela pelo perfil do contorno como por um molde. Naturalmente: viver não é mais que tratar com o mundo. O semblante geral que ele nos apresenta será o semblante geral de nossa vida. Por isso insisto tanto em fazer notar que o mundo de onde nasceram as massas atuais mostrava uma fisionomia radicalmente nova na história. Enquanto no pretérito viver significava para o homem médio encontrar a sua volta dificuldades, perigos, escassez, limitações de destino e dependência, o mundo novo aparece como um âmbito de possibilidades praticamente ilimitadas, sem dúvida, onde não se depende de ninguém. À volta desta impressão primária e permanente vai se formar cada alma contemporânea, como em volta da oposta se formaram as antigas. Porque esta impressão fundamental se converte em voz interior que murmura sem cessar umas como palavras no mais profundo da pessoa e lhe insinua tenazmente uma definição da vida que é, ao mesmo tempo, um imperativo. E se a impressão tradicional dizia: 'Viver é sentir-se limitado e, por isso mesmo, ter de contar com o que nos limita' , a voz novíssima grita: 'Viver é não encontrar limitação alguma; portanto, abandonar-se tranqüilamente a si mesmo. Praticamente nada é impossível, nada é perigoso e, em princípio, ninguém é superior a ninguém' (...) "

Jose Ortega y Gasset in: A rebelião das Massas Tradução de: Herrera Filho

segunda-feira, dezembro 26, 2005

"Mandar é respirar..."

DavidH.Gibson-a sOoL!!
"(...) Mandar é respirar, não é desta opinião? E até os mais deserdados chegam a respirar. O último na escala social tem ainda o cônjuge ou o filho. Se é celibatário, um cão. O essencial, em resumo, é uma pessoa poder zangar-se sem que outrem tenha o direito de responder. 'Ao pai não se responde', conhece a fórmula? Em certo sentido, ela é singular. A quem se responderia neste mundo senão a quem se ama? Por outro lado, ela é convincente. É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda a razão pode opor-se outra: nunca mais se acabava. A força, pelo contrário, resolve tudo. Levou tempo, mas conseguimos compreendê-lo. Por exemplo, deve tê-lo notado, a nossa velha Europa filósofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos tempos ingênuos: 'Eu penso assim. Quais são as suas objeções?' Tornamo-nos lúcidos. Substituímos o diálogo pelo comunicado. (...)"

Albert Camus

De outro mundo

"Todos os dias
atravessamos a mesma rua
ou o mesmo jardim,
todas as tardes
nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado,
feito de tijolos e de tempo urbano.

De repente, num dia qualquer,
a rua dá para um outro mundo, o jardim acaba de nascer,
o muro fatigado se cobre de signos.
Nunca os tínhamos visto e agora ficamos espantados por eles serem assim:
tanto e tão esmagadoramente reais.

Sua própria realidade compacta nos faz duvidar:
são assim as coisas ou são de outro modo?
Não, isto que estamos vendo pela primeira vez, já havíamos visto antes.
Em algum lugar, no qual nunca estivemos,
já estavam
o muro,
a rua,
o jardim.

E à surpresa segue-se a nostalgia.
Parece que nos recordamos e queríamos voltar para lá,
para esse lugar onde as coisas são sempre assim,
banhadas por uma luz antiqüíssima
e ao mesmo tempo acabada de nascer.

Nós também somos de lá.
Um sopro nos golpeia a fronte.
Adivinhamos que somos de outro mundo..."

Octávio Paz

O solitário

"O solitário leva uma sociedade inteira dentro de si: o solitário é multidão. E daqui deriva a sua sociedade. Ninguém tem uma personalidade tão acusada como aquele que junta em si mais generalidade, aquele que leva no seu interior mais dos outros. O gênio, foi dito e convém repeti-lo frequentemente, é uma multidão. É a multidão individualizada, e é um povo feito pessoa. Aquele que tem mais de próprio é, no fundo, aquele que tem mais de todos, é aquele em quem melhor se une e concentra o que é dos outros.
(...)
O que de melhor ocorre aos homens é o que lhes ocorre quando estão sozinhos, aquilo que não se atrevem a confessar, não já ao próximo mas nem sequer, muitas vezes, a si mesmos, aquilo de que fogem, aquilo que encerram em si quando estão em puro pensamento e antes de que possa florescer em palavras. E o solitário costuma atrever-se a expressá-lo, a deixar que isso floresça, e assim acaba por dizer o que todos pensam quando estão sozinhos, sem que ninguém se atreva a publicá-lo. O solitário pensa tudo em voz alta, e surpreende os outros dizendo-lhes o que eles pensam em voz baixa, enquanto querem enganar-se uns aos outros, pretendendo acreditar que pensam outra coisa, e sem conseguir que alguém acredite."


Miguel de Unamuno in: http://marketingaxiologico.blogspot.com

Que importa?

"Não se pode dizer que já não há piedade, não, deuses do céu, nós não cessamos de falar nela. Simplesmente, já não se absolve ninguém. Sobre a inocência morta pululam os juízes, os juízes de todas as raças, os de Cristo e os do Anticristo, que são, aliás, os mesmos, reconciliados no desconforto.

Aquele que adere a uma lei não teme o julgamento que o reinstala numa ordem em que crê. Mas o maior dos tormentos humanos é ser julgado sem lei. Nós vivemos, porém, neste tormento.

Uma pessoa das minhas relações dividia os seres em três categorias: os que preferem não ter nada que esconder a serem obrigados a mentir, os que preferem mentir a não ter nada que esconder e, finalmente, os que amam ao mesmo tempo a mentira e o segredo. Deixo à sua escolha o compartimento que me convém.

Que importa, no fim de contas? As mentiras não conduzem finalmente à via da verdade? E as minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tenderão todas para o mesmo fim, não terão o mesmo sentido? Que importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas se, nos dois casos, são significativas do que fui e do que sou?"

Albert Camus

domingo, dezembro 25, 2005

Só eu me interpreto...

"Os dignos não são aqueles que são bons, honestos, virtuosos por demonstrarem bondade, honestidade, virtuosidade ... A dignidade é uma virtude que "é", ela não "está"; ou seja, a dignidade não faz presença, não enche os olhos, não preenche espaços... ela é natural, é essência. Uma pessoa digna não necessita sair pelos quatro cantos da Terra anunciando sua dignidade.

Não! A dignidade, por ser natural, se revela através de outras virtudes: a bondade, a vontade, o respeito, a responsabilidade... Só pode ser revelada e reconhecida quando tais virtudes alicerçam atos, não quando demonstram atos.

A dignidade nos diz que devemos agir bem, não porque querem que ajamos mas porque queremos agir bem, porque está em nós agir bem, não somos reconhecidos como bons, justos... meramente por cumprirmos regras, ou por fazermos o mesmo que a maioria faz. Devemos nos fazer reconher como bons, justos porque nossa vontade, que é sempre livre de regras, nos move consciente e inconsientemente para isso .

Quando agimos de modo a querer demonstrar o quanto somos bons, honestos, dignos, respeitadores de regras, não estamos sendo moralmente éticos, pois ninguém pode ser ético consigo mesmo se se comporta como a maioria quer que se comporte, quando deixa de lado seus desejos, suas vontades... para viver aquilo que querem que seja vivido. Se assim nos comportamos, estamos sendo meros espectadores de nossas próprias vidas, estamos nos comportando como hipócritas.

Ser consciente daquilo o que se quer, nos torna responsáveis por sermos nós mesmos, por nossas ações e por acatarmos e respondermos pelas conseqüências do resultado de tais ações. Quando usamos exemplos de bondade para "justificar" ou "julgar" nossos atos ou alguém, não estamos sendo dignos, mas sim irresponsáveis, mesquinhos, pois ninguém e nem nada pode assumir aspecto de exemplo para a justificação ou julgamento de atos individuais, pois cada um deve saber de si... Cada um é um, e exemplos são comuns...

O ser humano não é "ser comum" é "ser individual" é "ser adjetivo".

Verdadeiros são aqueles que assumem o que fazem, são aqueles que não usam "poderes" para demonstrar sua pseudodignidade, são aqueles que respeitam o espaço, a liberdade e a vontade individual, respeitando cada ser humano como "um ser humano" que erra, acerta e que não é igual...

Ninguém tem o direito de julgar ninguém. Ninguém tem capacidade para isso. Muitas vezes julgamos pessoas, embasados em nossas próprias deficiências ou fraquezas... Muitas vezes julgamos porque reconhecemos no outro aquilo que falta ou que também existe em nós, usamos pessoas como espelhos para aquilo que somos, só que nos esquecemos que os espelhos refletem o contrário daquilo que a ele se apresenta, por isso todo julgamento embasado em "espelhos" explora o que de pior existe em nós, a falta de respeito àquilo que somos para nós mesmos.

... Não acho nada interessante usar indevidamente meios metafísicos, sobrenaturais para justificar atos concretos, físicos meus. Não uso muletas para justificar meus atos, costumo assumir erros, assumir minhas vontades, sou livre para isso. Uso minha liberdade, questiono regras, mudo regras que não representem aquilo que eu sinto e pago por isso... Não me afirmo como pessoa digna, não me influencio por meras palavras, gosto das pessoas e as respeito não porque elas são como eu gostaria que elas fossem, mas porque gosto e respeito.

Quando gosto, respeito, eu gosto e respeito verdadeiramente, não digo que gosto quando não gosto, não digo que respeito quando não respeito. Se não gosto e não respeito não digo nada, ou digo que não gosto e que não respeito. Tenho aprendido muito com todo mundo, sempre aprendo, procuro observar mais do que falar. Presencio e vivo atitudes as quais não gosto, mas aceito a individualidade de cada um, só me irrito por perceber que nem todas as pessoas conseguem ou se propõem a enxergar seus próprios erros e se sentem à vontade e instituídas de poderes para julgar e recriminar outras.

De resto, minha vida não vai mudar drasticamente apenas pelo mero fato de que nem todos têm a capacidade de serem o que gostariam de ser verdadeiramente... Aceito as pessoas como elas são, não como eu gostaria que elas fossem. Se me respeitam ou não, isso não me interessa, eu sou eu e só eu sei realmente o que significa ser eu, como diria Hermann Hesse, só eu sei me interpretar..."

a sOoL!!

Coisas da vida

MichaelKennamoonlit-a sOoL!! Quando a lua apareceu
Ninguém sonhava mais do que eu
Já era tarde
Mas a noite é uma criança distraída
Depois que eu envelhecer
Ninguém precisa mais me dizer
Como é estranho ser humano
Nessas horas de partida

É o fim da picada
Depois da estrada começa
Uma grande avenida
No fim da avenida
Existe uma chance, uma sorte,
Uma nova saída
São coisas da vida
E a gente se olha, e não sabe
Se vai ou se fica

Qual é a moral?
Qual vai ser o final
Dessa história?
Eu não tenho nada pra dizer
Por isso digo
Que eu não tenho muito o que perder
Por isso jogo
Eu não tenho hora pra morrer
Por isso sonho

Aaah... são coisas da vida
E a gente se olha,
E não sabe se vai ou se fica

Rita Lee

sexta-feira, dezembro 23, 2005

Os Vazios do Homem

LuciaPossas-a sOoL!!
Os vazios do homem não sentem ao nada
do vazio qualquer: do do casaco vazio,
do da saca vazia (que não ficam de pé
quando vazios, ou o homem com vazios);
os vazios do homem sentem a um cheio
de uma coisa que inchasse já inchada;
ou ao que deve sentir, quando cheia,
uma saca: todavia não, qualquer saca.
Os vazios do homem, esse vazio cheio,
não sentem ao que uma saca de tijolos,
uma saca de rebites; nem têm o pulso
que bate numa de sementes, de ovos.

Os vazios do homem, ainda que sintam
a uma plenitude (gora mas presença)
contêm nadas, contêm apenas vazios:
o que a esponja, vazia quando plena;
incham do que a esponja, de ar vazio,
e dela copiam certamente a estrutura:
toda em grutas ou em gotas de vazio,
postas em cachos de bolha, de não-uva.
Esse cheio vazio sente ao que uma saca
mas cheia de esponjas cheias de vazio;
os vazios do homem ou o vazio inchado:
ou vazio que inchou por estar vazio.

João Cabral de Melo Neto

A hora do cansaço

StefanoRondini-a sOoL!!
As coisas que amamos, as pessoas que amamos são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável no limite de nosso poder de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca, dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta, numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos, e todos nós cansamos,
por um outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho de eterno fica esse gosto ocre na boca ou na mente,
sei lá,
talvez no ar.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, dezembro 22, 2005

O "Amor Platônico"

"(...) Eros, afirma Diotima, não é um deus - não é belo nem bom -, nem é um mortal - não é feio nem mau. Nem imortal nem mortal, Eros é um daímon, intermediário entre deuses e homens, criador de laços entre eles. Qual sua origem?

Quando nasceu Afrodite, todos os deuses foram convidados para o festim, esquecendo-se de convidar Penia (a Penúria). Escondida do lado de fora, ao término da festa Penia esgueira-se pelos jardins para comer os restos. Vê, adormecido pelo vinho, Poros (o Engenho), filho de Métis (a Prudência Astuta). Deseja um filho dele. Deita-se ao seu lado e concebe Eros. Por haver sido concebido no dia do nascimento de Afrodite, a bela, Eros ama o belo. Triste é seu destino: como sua mãe, vive maltrapilho, sem teto, sem leito, dormindo pelas ruas e nos umbrais das portas, sempre carente, faminto; como seu pai, é audaz, astuto, grande caçador que não larga a presa, maquinador, hábil feiticeiro e sofista, deseja tudo quanto seja belo e aspira a tudo conhecer. "No mesmo dia, floresce e vive, morre e renasce, nunca opulento, nem completamente desvalido", diz Diotima.

Não sendo deus nem tolo, ama a sabedoria. Se fosse um deus, não poderia amá-la, pois não se ama o que já se possui; se fosse tolo, julgar-se-ia perfeito e completo e não poderia desejar aquilo cuja falta não poderia notar. Eros é o desejo: carência em busca de plenitude. Eros ama. O que ama o Amor? O que dura, o perene, imortal. Ama o bem, pois amar é desejar que o bom nos pertença para sempre. Por isso, Eros cria nos corpos o desejo sexual e o desejo da procriação, que imortaliza os mortais. O que é o Amor nos corpos bons? Sua beleza exterior e interior. Amando o belo exterior, Eros nos faz desejar as coisas belas; amando o belo interior, Eros nos faz desejar as almas belas.

O amor dos corpos concebe e engendra a imagem da imortalidade: os filhos, também mortais. O amor das almas belas concebe e engendra o primeiro acesso à verdadeira imortalidade: as virtudes. Os corpos mortais geram filhos mortais. As almas imortais geram virtudes imortais.

Onde reside o belo nas coisas corporais? Na perfeição de suas ações, de seus discursos e de seus pensamentos - em suas qualidades de inteligência. Assim, no coração da alma imortal anuncia-se o perfeito imperecível: a beleza do saber, a manifestação do lógos (Princípio), a ciência.

Que deseja o desejo? Que ama o amor? A beleza imperecível, seu supremo e único Bem. Que é desejar-amar o Belo-Bem? Desejar possuí-lo participando de sua bondade-beleza. Como participar do objeto do desejo-amor? Pelo conhecimento. Eros é desejo de saber: filosofia. Na contemplação da beleza-bondade - isto é, da idéia do Bem e da Beleza - os humanos alcançam a ciência ou o saber, por meio do qual concebem, engendram e dão nascimento às virtudes e através delas se tornam imortais.

Desejo de formosura - da forma bela ou da bela forma -, eis a essência de Eros. É isto que a tradição consagrou com a expressão Amor Platônico. (...)"

Platão - Trecho de O "Banquete" in: Introdução à Filosofia, Marilena Chauí

quarta-feira, dezembro 21, 2005

Alegoria da Caverna

MichaelKenna-a sOoL!!
"Platão criou uma imagem memorável para as falsas crenças e ilusões de que não raro sofremos. Ele escreveu que somos todos como habitantes de uma caverna, acorrentados ao solo, olhar voltado para sombras que percorrem uma parede, sombras que tomamos por realidades.

O primeiro homem a escapar da caverna da ilusão em que, segundo Platão, vivemos é o filósofo, aquele dentre nós que consegue perceber que vivemos, de certa forma, vidas de ilusão, aprisionados por sombras e correntes que não foram criadas por nós. Ao voltar à caverna com seu estranho relato de outras realidades, ele será aclamado por alguns e vaiado por outros. Tendemos a nos acomodar às nossas ilusões. Assim, somos facilmente ameaçados por quaisquer relatos estranhos de realidades maiores. Mas o verdadeiro filósofo tenta libertar o máximo de companheiros cativos, para que vivam nas realidades mais amplas e brilhantes que residem além dos estreitos limites de suas percepções costumeiras.

Esta é uma imagem viva da derradeira tarefa da filosofia. Sua meta é libertar-nos da ilusão e ajudar-nos a captar as realidades mais fundamentais.

Sob que ilusões você está vivendo agora?
Que coisas você valoriza sem realmente terem a importância que você lhes atribui?
Que coisas realmente valiosas você pode estar ignorando?
Que suposições você faz sobre sua vida que podem se basear em aparências, em vez de realidades?

A maioria das pessoas está acorrentada por todo tipo de ilusão. A filosofia, quando bem praticada, pretende nos ajudar a romper esses grilhões. (...)"

Tom Morris

Da genealogia do fanatismo.

MatthewLarkin-a sOoL!!
"Em si mesma, toda idéia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada...

Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas. Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. (...) Mesmo quando se afasta da religião o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. (...)

Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme sua idéia em deus: as conseqüências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela idéia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. (...) O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma verdade, de sua verdade. Disso resulta o fanatismo - tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia pela profecia e pelo terror ... Só escapam a ela os céticos (ou os preguiçosos e os estetas) porque não propõem nada, porque - verdadeiros benfeitores da humanidade - destroem os preconceitos e analisam o delírio. (...)

Em um espírito ardendente encontramos o animal de rapina disfarçado; não poderíamos defender-nos demasiado das guarras de um profeta... Quando elevar a voz, seja em nome do céu, da cidade ou de outros pretextos, afaste-se dele: sátiro de nossa solidão, não perdoa que vivamos aquém de suas verdades e de seus arrebatamentos; quer fazer-nos compartilhar de sua histeria, de seu bem, impô-la a nós e desfigurar-nos. Um ser possuído por uma crença e que não procurasse comunicá-la aos outros é um fenômeno estranho à terra, onde a obsessão da salvação torna a vida irrespirável.

(...) O fanático é incorruptível: se mata por uma idéia, pode igualmente morrer por ela; nos dois casos, tirano ou mártir, é um monstro. (...)"

Emil Cioran (Filósofo Romeno) - tradução de: José Tomaz Brum

Ao rosto vulgar dos dias

PaulSchilliger-a sOoL!!Ao rosto vulgar dos dias
Monstros e homens lado a lado,
Não à margem, mas na própria vida.
Absurdos monstros que circulam
Quase honestamente.
Homens atormentados, divididos, fracos.
Homens fortes, unidos, temperados.

Ao rosto vulgar dos dias,
A vida cada vez mais corrente,
As imagens regressam já experimentadas,
Quotidianas, razoáveis, surpreendentes.

Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir.

Alexandre O'Neill

Sobre promessas de amor...

"O que se pode prometer. Pode-se prometer ações, mas não sentimentos, pois estes são involuntários. Aquele que promete a alguém amar-lhe sempre ou odiar-lhe ou ser-lhe sempre fiel promete algo que não está em seu poder; o que se pode prometer são ações que, em verdade, são ordinariamente as conseqüências do amor, do ódio, da felicidade, mas que podem também provir de outros sentimentos, pois a uma mesma ação conduzem caminhos e motivos diferentes. Por conseguinte, a promessa de amar sempre a uma pessoa significará: enquanto eu te ame, prodigarizarei por ti as ações do amor; se deixo de amar-te, continuarás recebendo de mim as mesmas ações, ainda que por outros motivos, de sorte que na cabeça dos demais homens persista a aparência de que o amor será imutável e sempre o mesmo. Promete-se também a persistência da aparência do amor quando, sem cegar-se a si mesmo, se promete a alguém um amor eterno."

Friedrich W. Nietzsche

terça-feira, dezembro 20, 2005

Como armar um presépio

KelvinGray-a sOoL!!
Pegar
uma paisagem qualquer
cortar todas as árvores
e transformá-las em papel de imprensa
enviar para o matadouro mais próximo todos os animais

retirar da terra o petróleo ferro urânio
que possa eventualmente conter e fabricar
carros tanques aviões mísseis nucleares
cujos morticínios hão de ser noticiados com destaque

despejar os detritos industriais nos rios e lagos
exterminar com herbicida ou Napalm os últimos traços de vegetação
evacuar a população sobrevivente para as fábricas e cortiços da cidade

depois de reduzir assim a paisagem à medida do homem

erguer um estábulo com restos de madeira
e cobrí-lo de chapas enferrujadas e
esperar
esperar
que algum boi doente
algum burro fugido
algum carneiro sem dono
venha a esconder-se

esperar que venha ajoelhar-se
diante dele
algum velho pastor
que ainda
acredite em milagre
esperar
esperar
quem sabe
um dia
não nasce
ali
uma
criança
e
a
vida
recomeça.


José Paulo Paes

O homem é responsável por todos os homens...

JaiHall-a sOoL!!
"Quando concebemos um Deus criador, esse Deus idenficamos quase sempre como um artífice superior; e qualquer que seja a doutrina que consideremos, (...) admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos a inteligência ou pelo menos a acompanha, e que Deus, quando cria, sabe perfeitamente o que cria. Assim, o conceito do homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de um corta-papel no espírito do industrial; e Deus produz o homem segundo técnicas e uma concepção, exatamente como o artífice fabrica um corta-papel segundo uma definição e uma técnica. Assim, o homem individual realiza um certo conceito que está na inteligência divina.

No século XVIII, para o ateísmo dos filósofos, suprime-se a noção de Deus, mas não a idéia de que a essência precede a existência.O homem possui uma natureza humana; esta natureza, que é o conceito humano, encontra-se em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal (...) O existencialismo ateu (...) Declara ele que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou (...) a realidade humana.

O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber.

O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz. (...)

Mas que queremos dizer nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Porque o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o homem, antes de mais nada, é o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projetar no futuro. (...)

Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsablidade da sua existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens."

Jean-Paul Sartre

Porque não...

"Eles
começaram
perseguindo os comunistas,
e eu não protestei,
porque não era comunista.
Depois,
vieram buscar os judeus,
e eu não protestei,
porque não era judeu.
Depois ainda,
vieram buscar os sindicalistas,
e eu não protestei,
porque não era sindicalista.
Aí, vieram buscar os homossexuais,
e eu não protestei,
porque não era homossexual.
Aí então,
vieram buscar os ciganos,
e eu não protestei,
porque não era cigano.
E depois,
vieram buscar os imigrantes,
e eu não protestei,
porque não era imigrante.
Depois,
vieram me buscar.
E já não havia ninguém para protestar".

Martin Niemöller

segunda-feira, dezembro 19, 2005

Diante da lei

"Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar-lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. - "É possível" - diz o guarda. - "Mas não agora!". O guarda afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz: - "Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara: sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim".

O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. Mas, ao olhar o guarda (...), prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar. O guarda dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras coisas, mas são perguntas lançadas com indiferença, à semelhança dos grandes senhores, no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar. O homem, que se provera bem para a viagem, emprega todos os meios custosos para subornar o guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre: - "Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste".

Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e aquele afigura-se-lhe o único obstáculo à entrada na Lei. Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e depois, ao envelhecer, limita-se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil, (...) Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, no meio da escuridão, um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte está próxima.

Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Faz-lhe um pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo já arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar até muito baixo porque a diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo. - "Que queres tu saber ainda?", pergunta o guarda. - "És insaciável".

- "Se todos aspiram a Lei", disse o homem. - "Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?". O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: - "Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a"."

Franz Kafka - tradução de Torrieri Guimarães

Pessoas sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão".

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, dezembro 18, 2005

Nenhuma palavra

KarekinGoekjian-a sOoL!!noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras

hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se

onde se pode - num vocabulário reduzido e
obsessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir

apesar de tudo
continuamos e repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar

e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial

Al Berto

Atuar para depois Abandonar

"Eu odeio, no fundo, toda a moral que diz: 'Não faças isto, não faças aquilo. Renuncia. Domina-te'... Gosto, pelo contrário, da moral que me leva a fazer uma coisa, a refazê-la, a pensar nela de manhã à noite, a sonhar com ela durante a noite, e a não ter jamais outra preocupação que não seja fazê-la bem, tão bem quanto for capaz, e capaz entre todos os homens. A viver assim despojamo-nos, uma a uma, de todas as preocupações que não têm nada a ver com esta vida: vê-se sem ódio nem repugnância desaparecer hoje isto, amanhã aquilo, folhas amarelas que o menor sopro um pouco vivo solta da árvore; (...) 'É a nossa atividade que deve determinar o que temos de abandonar; é atuando que deixaremos', (...) eis o que amo, (...) Mas eu não quero trabalhar para me empobrecer mantendo os olhos abertos, não quero essas virtudes negativas que têm por essência a negação e a renúncia".

Friedrich W. Nietzsche

Esperemos

BobSnell5ea-a sOoL!!Há outros dias que não têm chegado ainda,
que estão fazendo-se
como o pão ou as cadeiras
ou o produtodas farmácias
ou das oficinas
- há fábricas de dias que virão -
existem artesãos da alma
que levantam e pesam e preparam
certos dias amargos ou preciosos
que de repente chegam à porta
para premiar-nos
com uma laranja
ou assassinar-nos de imediato.

Pablo Neruda

sábado, dezembro 17, 2005

Por que nome chamaremos

KarekinGoekjian-a sOoL!!Por que nome chamaremos
quando nos sentirmos pálidos
sobre os abismos supremos?

De que rosto, olhar, instante,
veremos brilhar as âncoras
para as mãos agonizantes?

Que salvação vai ser essa,
com tão fortes asas súbitas,
na definitiva pressa?

Ó grande urgência do aflito!

Ecos de misericórdia
procuram lágrima e grito,
– andam nas ruas do mundo,
pondo sedas de silêncio
em lábios de moribundo.

Cecília Meireles

A bomba

LaurieTumerpd-a sOoL!!A bomba
é uma flor de pânico apavorando os floricultores
A bomba
é o produto quintessente de um laboratório falido
A bomba
é miséria confederando milhões de misérias
A bomba
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles
A bomba
é grotesca de tão metuenda e coça a perna
A bomba
dorme no domingo até que os morcegos esvoacem
A bomba
não tem preço não tem lugar não tem domicílio
A bomba
amanhã promete ser melhorzinha mas esquece
A bomba
não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está

A bomba
mente e sorri sem dente
A bomba
vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados
A bomba
é redonda que nem mesa redonda, e quadrada
A bomba
tem horas que sente falta de outra para cruzar
A bomba
furtou e corrompeu elementos da natureza e mais furtara e corrompera
A bomba
multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação
A bomba
chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés
A bomba
faz week-end na Semana Santa
A bomba
brinca bem brincado o carnaval

LaurieTumerpd-a sOoL!!
A bomba
tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia
A bomba
industrializou as térmites convertendo-as em balísticos interplanetários
A bomba
sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose, de verborréia
A bomba
não é séria, é conspicuamente tediosa
A bomba
envenena as crianças antes que comece a nascer
A bomba
continua a envenená-las no curso da vida
A bomba
respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais
A bomba
pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba
A bomba
é um cisco no olho da vida, e não sai
A bomba
é uma inflamação no ventre da primavera
A bomba
tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro, cobalto e ferro além da comparsaria
A bomba
tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.
A bomba
não admite que ninguém acorde sem motivo grave
A bomba
quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos
A bomba
mata só de pensarem que vem aí para matar
A bomba
dobra todas as línguas à sua turva sintaxe
A bomba
saboreia a morte com marshmallow
A bomba
arrota impostura e prosopéia política
A bomba
cria leopardos no quintal, eventualmente no living

A bomba
é podre
A bomba
gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado
A bomba
pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo
A bomba
declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade
A bomba
tem um clube fechadíssimo
A bomba
pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel
A bomba
é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris
A bomba
oferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos de paz
A bomba
não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas
A bomba
desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger velhos e criancinhas
A bomba
não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer

LaurieTumerpd-a sOoL!!
A bomba
é câncer
A bomba
vai à Lua, assovia e volta
A bomba
reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação em cadeia
A bomba
está abusando da glória de ser bomba
A bomba
não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba o instante inefável
A bomba
fede
A bomba
é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina
A bomba
com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve
A bomba
não destruirá a vida

LaurieTumer-a sOoL!!
O homem
(tenho esperança) liquidará a bomba.

Carlos Drummond de Andrade

Livro de Leitura

CharlesCramersw-a sOoL!!
O mais singular livro dos livros
É o Livro do Amor;
Li-o com toda a atenção:
Poucas folhas de alegrias,
De dores cadernos inteiros.
Apartamento faz uma seção.
Reencontro! um breve capítulo,
Fragmentário. Volumes de mágoas
Alongados de comentários,
Infinitos, sem medida.
Ó Nisami! --- mas no fim
Achaste o justo caminho;
O insolúvel, quem o resolve?
Os amantes que tornam a encontrar-se.

Goethe

Trecho do livro: "Paixão segundo G.H."

TomBarilaan-a sOoL!!
"É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo. Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando. Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas estou tão pouco preparada para entender. Mas como faço agora? Por que não tenho coragem de apenas achar um meio de entrada? Oh, sei que entrei, sim. Mas assustei-me porque não sei para onde dá essa entrada. E nunca antes eu me havia deixado levar, a menos que soubesse para o quê.

(...)

Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade.

(...)

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar".

Clarice Lispector


quarta-feira, dezembro 14, 2005

Trecho do texto "Os Três Mal-Amados"

BernardPhillips-a sOoL!!
"(...)
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
BernardPhillips-a sOoL!!O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte".

João Cabral de Melo Neto

terça-feira, dezembro 13, 2005

Programa

CharlesCramerS221-a sOoL!!
Não queremos poesia de gênero algum,
Queremos truques mágicos de saco,
Procuramos tapar na existência um fatal buraco.
E apesar de esforço insano não tapamos nenhum.
Mas que sabeis vós outros do secreto aspirar,
Dos soluços de divina histeria que em gargantas choram,
Quando, plenamente absorvidos pelo haxixe da alma elementar,
Beijamos o primeiro degrau, para além de cujo limiar
Erroneamente os deuses moram?

Wilhelm Klemm- tradução de João Barrento

segunda-feira, dezembro 12, 2005

Às vezes com a pessoa a quem amo

MiaFriedrich010-a sOoL!!
"Às vezes com a pessoa a quem amo
Fico cheio de raiva
Por medo de estar só eu dando amor
Sem ser retribuído;
Agora eu penso que não pode haver amor
Sem retribuição, que a paga é certa
De uma forma ou de outra.
(Amei certa pessoa ardentemente
e meu amor não foi correspondido,
mas foi daí que tirei estes cantos.)"

Walt Whitman

Lugar

JeanneBridsallaab-a sOoL!!Sua face
Na mente, lento amar

Lento crescer, lento
Para aprender o suficiente

Paciência para aprender
A estar aqui, apreciar

O que seja a distância
Lá fora, sem você

Aqui, aqui
Sozinho.

Robert Creeley - Tradução: Virna Teixeira

domingo, dezembro 11, 2005

Tentações do apocalipse

Não é de poesia que precisa o mundo.
Aliás, nunca precisou.
Foi sempre uma excrescência escandalosa
que se lhe dissesse como é infame a vida
que não vivamos para outrem nele.
E nunca, só de ser, disse a poesia uma outra coisa,
ainda quando finge que de sobreviver se faz a vida.

O mundo precisa de morte.

Não da morte com que assassina diariamente
quantos teimam em dizer-lhe da grandeza de estar vivo.

Nem da morte que o mata pouco a pouco,
e de que todos se livram no enterro dos outros.

Mas sim da morte que o mate
como um percevejo, uma pulga, um piolho, uma barata, um rato.

Ou que a bomba venha para estas culpas,
se foi para isso que fizemos filhos.

Há que fazer voltar à massa primitiva esta imundície.
E que, na torpitude de existir-se,
ao menos possa haver as alegrias ingênuas de todo o recomeço.

Que os sóis desabem.
Que as estrelas morram.
Que tudo recomece
desde quando a luz não fora ainda separada
às trevas do espaço sem matéria.
Nem havia um espírito flanando ocioso sobre as águas quietas,
que pudesse mentir-se olhando a criação.

(O mais seguro, porém, é não recomeçar.)

Jorge de Sena