"Em si mesma, toda idéia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada...
Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas. Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. (...) Mesmo quando se afasta da religião o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. (...)
Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme sua idéia em deus: as conseqüências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela idéia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. (...) O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma verdade, de sua verdade. Disso resulta o fanatismo - tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia pela profecia e pelo terror ... Só escapam a ela os céticos (ou os preguiçosos e os estetas) porque não propõem nada, porque - verdadeiros benfeitores da humanidade - destroem os preconceitos e analisam o delírio. (...)
Em um espírito ardendente encontramos o animal de rapina disfarçado; não poderíamos defender-nos demasiado das guarras de um profeta... Quando elevar a voz, seja em nome do céu, da cidade ou de outros pretextos, afaste-se dele: sátiro de nossa solidão, não perdoa que vivamos aquém de suas verdades e de seus arrebatamentos; quer fazer-nos compartilhar de sua histeria, de seu bem, impô-la a nós e desfigurar-nos. Um ser possuído por uma crença e que não procurasse comunicá-la aos outros é um fenômeno estranho à terra, onde a obsessão da salvação torna a vida irrespirável.
(...) O fanático é incorruptível: se mata por uma idéia, pode igualmente morrer por ela; nos dois casos, tirano ou mártir, é um monstro. (...)"
Emil Cioran (Filósofo Romeno) - tradução de: José Tomaz Brum
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