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Música Brasileira

"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

segunda-feira, outubro 31, 2005

Escolhendo amigos

"Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim. Para isso, só sendo louco.

Quero-os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças. Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta. Não quero só o ombro ou o colo, quero também sua maior alegria.

Amigo que não ri junto não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.

Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice. Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto e velhos, para que nunca tenham pressa.

Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que normalidade é uma ilusão imbecil e estéril."

Oscar Wilde

Namorados

O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:

_ Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com a sua cara.

A moça olhou de lado e esperou.

_ Você sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listada?

A moça se lembrava:

_ A gente fica olhando...

A meninice brincou de novo nos olhos dela.

O rapaz prosseguiu com muita doçura:

_ Antônia, você parece uma lagarta listada.

A moça arregalou os olhos, fez exclamações.

O rapaz concluiu:

_ Antônia, você é engraçada! Você parece louca.

Manuel Bandeira

O Eu e o Tu.

Entre os poderes que recebeu o cérebro, conta-se o mais decisivo de todos eles, a saber, a criação da comunicação entre os homens, a que nós chamamos o "discurso".

Foi então que cada um de nós pôde tomar-se a si próprio como objeto do seu próprio discurso, ou seja, desenvolver a sua consciência de existente. Mas esse discurso só podia existir numa rede de troca e de partilha.

Essa rede coletiva é, assim, o ponto de partida da consciência individual. O que gosto de resumir com a fórmula (...):
"Eu digo eu porque outros me disseram tu."

O espírito é pura e simplesmente o ponto de chegada da aventura da matéria. Não tem origem senão no conjunto do cosmos (...) a consciência pessoal só viceja se se enraizar numa consciência colectiva; porque a minha consciência é o caminho percorrido na companhia das outras consciências.

Albert Jacquard

Do pecado de pensar

"Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.

Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude.

Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.

Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo
e receber como resposta o amor materno que nutre e embala.

Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.

Faça com que a solidão não me destrua.

Faça com que minha solidão me sirva de companhia.

Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.

Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.

Receba em teus braços o meu pecado de pensar. "

Clarice Lispector

domingo, outubro 30, 2005

Um tipo de privação

"(...) o ser humano se distingue dos outros animais por sua capacidade de fazer perguntas com o objetivo de adquirir conhecimento sobre si mesmo e sobre o mundo em que vive. Reconhecendo este fato, Aristóteles dá início a um de seus mais importantes livros com a seguinte sentença: "Todos os homens, por natureza, tendem ao saber". Em outras palavras, ele diz que o desejo de conhecer é uma necessidade tão natural quanto o desejo de comer.

Entretanto, há uma diferença curiosa entre a necessidade de conhecimento e a necessidade de comida. Quando desprovidos de alimento, a maioria dos seres humanos é capaz de percebê-lo, porque sentem o estômago doer. Mas, se desprovidos de conhecimento, não é sempre que os seres humanos se dão conta dessa privação. Desafortunadamente, é raro sentirmos a dor da ignorância como sentimos a dor da fome."

Mortimer Adler

quinta-feira, outubro 27, 2005

Refinamento

"(...) Em que curiosa simplificação e falsificação vive o homem! Impossível se maravilhar o bastante, quando se abrem os olhos para esse prodígio! Como tornarmos tudo claro, livre, leve e simples à nossa volta! Como sabemos dar a nossos sentidos um passo livre para tudo que é superficial, e a nosso pensamento um divino desejo de saltos caprichosos e pseudoconclusões! - como conseguimos desde o princípio manter nossa ignorância, para gozar de uma quase inconcebível liberdade, imprevidência, despreocupação, impetuosidade, jovialidade na vida, para gozar a vida! E foi apenas sobre essa base de ignorância, agora firme e granítica, que a ciência pôde assentar até o momento, a base de uma vontade bem mais forte, a vontade de não-saber, de incerteza, de inverdade! Não como seu oposto, mas como seu refinamento! (...)"

Nietzsche

O cético


"(...) A vida humana é mais governada pelo acaso do que pela razão, deve ser encarada mais como um enfadonho passatempo do que como uma ocupação séria, e é mais influenciada pelo temperamento de cada um do que por princípios de ordem geral. Devemos empenharmos nela com paixão e ansiedade? Não é merecedora de tanta preocupação. Devemos ser indiferentes a tudo que acontece? Nossa fleuma e falta de interesse far-nos-á perder todo o prazer do jogo. Enquanto especularmos a respeito da vida, a vida já passou. E a morte, embora talvez eles a recebam de maneiras diferentes, trata do mesmo modo o tolo e o filósofo. Tentar reduzir a vida a uma regra e um método exatos, é geralmente uma ocupação dolorosa ou infrutífera e não é isto mais uma prova de que superestimamos o prêmio porque lutamos? E mesmo especular tão cuidadosamente sobre ela, equivaleria a suprestimá-la, se para certos temperamentos esta ocupação não fosse uma das mais divertidas a que é dedicar a vida."

David Hume

quarta-feira, outubro 26, 2005

Catando os Cacos do Caos

Catar os cacos do caos
como quem cata no deserto
o cacto
- como se fosse flor.

Catar os restos e ossos
da utopia
como de porta em porta
o lixeiro apanha
detritos da festa fria
e pobre no crepúsculo
se aquece na fogueira erguida
com os destroços do dia.

Catar a verdade contida
em cada concha de mão,
como o mendigo cata as pulgas
no pêlo
- do dia cão.

Recortar o sentido
como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso
com a inconsútil emenda
à vista.

Como o arqueólogo
reunir os fragmentos,
como se ao vento
se pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.

Catar os cacos de Dionisio
e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido
beber o vinho
ou sangue vertido.

Catar os cacos de Orfeu partido
pela paixão das bacantes
e com Prometeu refazer
o fígado
- como era antes.

Catar palavras cortantes
no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras
o brilho do diamante.

É um quebra-cabeça? Então
de cabeça quebrada vamos
sobre a parede do nada
deixar gravada a emoção

Cacos de mim
Cacos do não
Cacos do sim
Cacos do antes
Cacos do fim

Não é dentro
nem fora
embora seja dentro e fora
no nunca e a toda hora
que violento
o sentido nos deflora.

Catar os cacos
do presente e outrora
e enfrentar a noite
com o vitral da aurora.

Affonso Romano Sant'Anna

Vladimir Herzog

"Os jornais da semana nos obrigaram a reviver tristes períodos da história do Brasil. As fotos chocantes de um homem que seria o jornalista Vladimir Herzog, que sofreu morte por enforcamento durante a ditadura militar, nos conduziram de volta, em cheio, a um período que gostaríamos ver banido para sempre de nossa memória.

Vlado militante, Vlado combatente, Vlado brilhante jornalista, Vlado de Clarice, Vlado amado e amante foi, como centenas de outros jovens brasileiros, ferido em seus direitos, sua dignidade, vítima indefesa da violência feroz que tomou conta do Brasil por tantos anos em delírio de caça mortal a seres humanos devido apenas a suas idéias, sua ideologia, sua posição política.

A foto inesquecível de Vladimir Herzog, ou melhor, de seu cadáver enforcado na janela da cela, com os joelhos dobrados, como que em derradeira prece, revivem com força cruel o absurdo da violência em qualquer de suas formas.

Toda violência é violação da personalidade daquele que a sofre. Toda violência é ameaça de morte. E isso porque atingir a dignidade do ser humano é já atingir sua vida. Da humilhação, da tortura ao extermínio e ao genocídio, portanto, são múltiplas as formas de violência e múltiplas as de morte.

A violência é igualmente algo irracional. Por isso, o ser humano desperta para a razão e o pensar quando toma consciência da violência como algo radicalmente contrário às exigências de sua razão. A ética, então, vai julgar a violência, identificando-a como a negação da humanidade. E vai opor-lhe uma negação categórica, recusando-lhe toda dignidade.

Muitas vezes confundida com a violência, a força seria na verdade o seu contrário. Força seria a virtude do ser humano que tem a coragem de recusar submeter-se ao império da violência. O homem forte - ao contrário do sentido comumente dado a isso - não seria aquele que possui os meios do poder e da violência, mas o que possui a sabedoria da não-violência. Aquele que possui a força é aquele que sabe resistir ao arrastar da paixão coletiva e guarda o controle de seu próprio destino. A virtude da força é o que se chama comumente a fortaleza de alma. A tradição cristã a identifica com o dom da fortaleza -um dos sete dons do Espírito Santo-, que permite enfrentar as provações e as vicissitudes da vida, mantendo-se firme no que se crê até o dom da própria existência.

Na sociedade como no mundo, a ordem resulta do jogo das forças e energias que se limitam e se equilibram umas às outras. Isso é a imagem da pureza e da verdade: o equilíbrio entre a força da gravidade e a energia da luz. Não pode, portanto, haver relações justas entre os homens senão na medida em que uns e outros sabem limitar seus desejos e não desejam se apropriar dos objetos finitos. Pois “um desejo limitado pode compor com meus outros desejos e com os desejos limitados dos outros homens”. Um desejo limitado é, pois, compatível com a força mas não com a violência.

A violência surge precisamente quando o ser humano começa a desejar o ilimitado, ou seja, perde o freio de seus próprios desejos. Ou quando seu desejo se encontra contrariado pelos outros. A violência se enraíza num desejo ilimitado que esbarra no limite constituído pelo desejo de um outro.

A justiça e a paz só podem acontecer, portanto, no momento em que os seres humanos renunciam a possuir o infinito, renunciam a desejar ilimitadamente. A injustiça resultaria então do desequilíbrio das forças pelo qual os mais fracos são oprimidos pelos mais fortes. Agir pela justiça é restabelecer o equilíbrio das forças. Mas isto só é possível exercendo, por sua vez, uma força que imponha um limite à força que introduz o desequilíbrio.

Da mesma forma, a paz mesma não resulta de duas guerras, mas de duas forças iguais e de sentido contrário que se limitam uma à outra e se mantêm em equilíbrio. Se a paz realmente existe, estas forças são apenas potencialmente violentas e podem permanecer não violentas.

A violência não é somente instrumento de opressão social ou de agressão militar. É, também, um método de ação que parece às vezes necessário, para defender a liberdade ameaçada ou para conquistá-la. A violência, com efeito, pode ser empregada a serviço de causas justas. Mas isto não a torna justa. Se ela parece necessária para combater a injustiça, não permanece menos como uma violência que machuca a humanidade do homem, tanto daquele que a sofre como daquele que a exerce.

Voltando ao episódio do fim trágico de Vladimir Herzog, é fundamental nos lembrarmos de que ele foi vítima da violência, mas não perdeu a força. A força que o fez destemido a ponto de lutar por suas idéias e arriscar-se por elas. A força que o levou à morte pelo único crime de pertencer a um partido político.

Sua morte, no entanto, transformou-se em força ainda maior ao iniciar a mobilização de uma nação adormecida e anestesiada, que na sua imensa maioria fingia -por medo ou alienação- desconhecer o que se passava nos porões do DOI-CODI. A partir da violência sofrida por Vlado, a voz destemida do então cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, levantou-se para dizer: “Nunca mais”!, sendo secundado em coro por milhares de outras vozes.

Coisa semelhante aconteceu com Jesus de Nazaré, cuja morte violenta foi o divisor de águas da história da humanidade, mostrando que o amor é mais forte do que a morte. Na esteira de Jesus, homens e mulheres deram suas vidas por esse Brasil afora por defender os oprimidos e humilhados.

Ainda que as fotos amplamente divulgadas pela imprensa brasileira nesta semana não sejam de Herzog, o importante é que reavivaram em todos nós um período terrível de nossa história, que não devemos nem podemos esquecer jamais. Que essa triste lembrança nos ajude a experimentar simultaneamente a força que não mata, mas ao mesmo tempo em que perdoa e resgata, sabe gritar indignada: “Nunca mais!” "

Vladimir Herzog, brasileiro naturalizado foi morto em vinte e cinco de outubro de 1975 pelo regime militar que durante muito tempo ditou regras e proíbiu ideologias particulares no Brasil... Essa é uma parte da história brasileira que não pode ser esquecida ou ignorada... Afinal, somos filhos da repressão e, se hoje podemos nos considerar vivendo num país democrático essa possibilidade só se tornou real, ou aparentemente real, por intermédio da luta de muitos brasileiros que lutaram até a morte por seus ideais em busca da liberdade de pensamento e expressão...

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Eu, o vento

"Que sou calmo e violento, sou vendaval e brisa que a mercê da vida, às vezes sou conforto, às vezes incômodo. Às vezes paz, às vezes caos.
Eu, o vento, que sou incolor e frio, sou calor e sangue, que a mercê da vida, às vezes sou dor, às vezes rotina. As vezes sou morte, às vezes vida.
Eu, o vento, que sou órfão e só, sou carinho e carente, que a mercê da vida, às vezes sou colheita, às vezes plantio. Às vezes sou notado, às vezes esquecido.
Eu, o vento, que sou força e anemia, sou opressor e vítima, que a mercê da vida, às vezes sou vento, simplesmente."

Mário Nhardes

terça-feira, outubro 25, 2005

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.

Em cofre não se guarda coisa alguma
Em cofre perde-se a coisa à vista

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la
ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordando por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro do que pássaros sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara
e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:

Por guardar-se o que quer guardar.

Antônio Cícero

Nome

... Procuro por sinais, mas não sei se saberei reconhecer sinais... os teus sinais... Talvez por você teimar em deixá-los sobre controle o tempo todo... Dê luz aos teus sinais para que eu possa reconhecê-los, sabê-los e vivê-los... Como você diz que tem que ser...

"Se loucura for esta vontade de te ter
Em todos os instantes
Dividindo o tempo em dois calendários
Antes e depois de nós.
Se loucura for esta procura de ti
Em todos os cantos onde possas estar
Onde possas deixar
Da tua presença sinais.
Se loucura for esta avidez do corpo
Esta fome de sabores e odores
Que são os teus.
Então ando de mãos dadas com a loucura
E cantá-la-ei em toda a parte
E direi da loucura a todo o instante
E dar-lhe-ei um nome
Chamando e cantando o teu. "

Encandescente
in: http://eroticidades.blogspot.com.

Carta aos Mortos

Amigos, nada mudou
em essência.

Os salários mal dão para os gastos,
as guerras não terminaram
e há vírus novos e terríveis,
embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
tomba morto por questão de amor.

Há filmes interessantes, é verdade,
e como sempre, mulheres portentosas
nos seduzem com suas bocas e pernas,
mas em matéria de amor
não inventamos nenhuma posição nova.

Alguns cosmonautas ficam no espaço
seis meses ou mais, testando a engrenagem
e a solidão.
Em cada olimpíada há récordes previstos
e nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
com a modernidade.

Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
relemos o Quixote, e a primavera
chega pontualmente cada ano.

Alguns hábitos, rios e florestas
se perderam.
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
ou toma a fresca da tarde,
mas temos máquinas velocíssimas
que nos dispensam de pensar.

Sobre o desaparecimento dos dinossauros
e a formação das galáxias
não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
países se dividem
e as formigas e abelhas continuam
fiéis ao seu trabalho.

Nada mudou em essência.

Cantamos parabéns nas festas,
discutimos futebol na esquina
morremos em estúpidos desastres
e volta e meia
um de nós olha o céu quando estrelado
com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração , insolente,
continua a achar
que vive no ápice da história.

Afonso Romano de Sant'Anna

segunda-feira, outubro 24, 2005

Prosa Patética


Nunca fui de ter inveja, mas de uns tempos pra cá tenho tido.

As mãos dadas dos amantes tem me tirado o sono.

Ontem, desejei com toda força ser a moça do supermercado.

Aquela que fala do namorado com tanta ternura.

Mesmo das brigas ando tendo inveja.

Meu vizinho gritando com a mulher, na casa cheia de crianças,

sempre querendo, querendo.


Me disseram que solidão é sina e é pra sempre.

Confesso que gosto do espaço que é ser sozinho.

Essa extensão, largura, páramo, planura, planície, região.

No entanto, a soma das horas acorda sempre a lembrança do hálito quente do outro.

A voz, o viço.

Hoje andei como louca, quis gritar com a solidão, expulsar de mim essa

Nossa senhora ciumenta. Madona sedenta de versos.

Mas tive medo. Medo de que ao sair levasse a imensidão onde me deito.

Ausência de espelhos que dissolve a falta, a fraqueza, a preguiça.

E me faz vento, pedra, desembocadura, abotoadura e silêncio.

Tive medo de perder o estado de verso e vácuo, onde tudo é grave e único.

E me mantive quieta e muda.

E mais do que nunca tive inveja.

Invejei quem tem vida reta, quem não é poeta.

Quem simplesmente ama e é amado. E lê jornal domingo.

Come pudim de leite e doce de abóbora.

A mulher que engravida porque gosta de criança.

Pra mim tudo encerra a gravidade prolixa das palavras:

madrugada, mãe, ônibus, olhos, desabrocham em camadas de sentido, e ressoam como

gongos ou sinos de igreja em meus ouvidos.

Escorro entre palavras, como quem navega um barco sem remo.

Um fluxo de líquidos. Um côncavo silêncio.

Clarice diz, que sua função é cuidar do mundo.

E eu, que não sou Clarice nem nada, fui mal forjada, não tenho bons modos nem berço.

Que escrevo num tempo onde tudo já foi falado, cantado, escrito.

O que o silêncio pode me dizer que já não tenha sido dito?

Eu, cuja única função é lavar palavra suja, nesse fim de século sem certeza?

Eu quero que a solidão me esqueça.

Viviane Mosé

sábado, outubro 22, 2005

Palavras

Palavras não são más
Palavras não são quentes
Palavras são iguais
Sendo diferentes

Palavras não são frias
Palavras não são boas
Os números pra os dias
E os nomes pra as pessoas
Palavras eu preciso
Preciso com urgência
Palavras que se usem
Em casos de emergência

Dizer o que se sente
Cumprir uma sentença
Palavras que se diz

Se diz e não se pensa
Palavras não têm cor
Palavras não têm culpa
Palavras de amor
Pra pedir desculpas
Palavras doentias
Páginas rasgadas

Palavras não se curam
Certas ou erradas
Palavras são sombras
As sombras viram jogos

Palavras pra brincar
Brinquedos quebram logo

Palavras pra esquecer
Versos que repito
Palavras pra dizer
De novo o que foi dito
Todas as folhas em branco
Todos os livros fechados
Tudo com todas as letras

Nada de novo debaixo do sol.

Marcelo Fromer e Sérgio Brito

quinta-feira, outubro 20, 2005

O poema do semelhante

O Deus da parecença
que nos costura em igualdade
que nos papel-carboniza
em sentimento
que nos pluraliza
que nos banaliza
por baixo e por dentro,
foi este Deus que deu
destino aos meus versos,

Foi Ele quem arrancou deles
a roupa de indivíduo
e deu-lhes outra de indivíduo
ainda maior, embora mais justa.

Me assusta e acalma
ser portadora de várias almas
de um só som comum eco
ser reverberante
espelho, semelhante
ser a boca
ser a dona da palavra sem dono
de tanto dono que tem.

Esse Deus sabe que alguém é apenas
o singular da palavra multidão
Eh mundão
todo mundo beija
todo mundo almeja
todo mundo deseja
todo mundo chora
alguns por dentro
alguns por fora
alguém sempre chega
alguém sempre demora.

O Deus que cuida do
não-desperdício dos poetas
deu-me essa festa
de similitude
bateu-me no peito do meu amigo
encostou-me a ele
em atitude de verso beijo e umbigos,
extirpou de mim o exclusivo:
a solidão da bravura
a solidão do medo
a solidão da usura
a solidão da coragem
a solidão da bobagem
a solidão da virtude
a solidão da viagem
a solidão do erro
a solidão do sexo
a solidão do zelo
a solidão do nexo.

O Deus soprador de carmas
deu de eu ser parecida
Aparecida
santa
puta
criança
deu de me fazer
diferente
pra que eu provasse
da alegria
de ser igual a toda gente

Esse Deus deu coletivo
ao meu particular
sem eu nem reclamar
Foi Ele, o Deus da par-essência
O Deus da essência par.

Não fosse a inteligência
da semelhança
seria só o meu amor
seria só a minha dor
bobinha e sem bonança
seria sozinha minha esperança.

Eloísa Lucinda

terça-feira, outubro 18, 2005

"Palavras presas"

muitas doenças que as pessoas têm são poemas presos
abscessos tumores nódulos
pedras são palavras
calcificadas
poemas sem vazão

mesmo cravos pretos espinhas cabelo encravado
prisão de ventre poderia
um dia ter sido poema

pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra presa
palavra boa é palavra líquida
escorrendo em estado de lágrima

lágrima é dor derretida
dor endurecida é tumor

lágrima é alegria derretida
alegria endurecida é tumor

lágrima é raiva derretida
raiva endurecida é tumor

lágrima é pessoa derretida

pessoa endurecida é tumor

tempo endurecido é tumor

tempo derretido é poema

palavra suor é melhor do que palavra cravo
que é melhor do que palavra catarro
que é melhor do que palavra bílis
que é melhor do que palavra ferida
que é melhor do que palavra nódulo
que nem chega perto da palavra tumores internos

palavra lágrima é melhor

palavra é melhor

é melhor poema

Viviane Mosé

Fora do tempo

Roubo um tempo ao tempo
Roubo-te ao tempo
Em que tu estás.

Invento um novo tempo
Fora do tempo
Em que tu és.

Trago-te
Para o meu tempo
Para que sejas

Durante um tempo

Fora de tempo

O meu lugar.

Encandescente in: http://eroticidades.blogspot.com/

A pergunta

Só a nossa noção de tempo nos faz pensar em Juízo Final, quando é de justiça sumária que se trata.

O suicida é como o prisioneiro que, vendo armar-se uma forca no pátio, imagina que é para ele - foge de sua cela, à noite, desce ao pátio e pendura-se ao baraço.

Os mártires não menosprezam o corpo, apenas fazem-no pregar à cruz: é no que estão de acordo com seus adversários.

As portas são inumeráveis, a saída é uma só, mas as possibilidades de saída são tão numerosas quanto as portas. Há um propósito e nenhum caminho: o que denominamos caminho não passa de vacilação.

Os leopardos invadem o Templo e esvaziam os vasos sagrados... O fato não cessa de reproduzir-se; até que se chega a prever o momento exato e isso entra a fazer parte do ritual.

Os bons vão a passo certo; os outros, ignorando-os inteiramente, dançam à volta deles a coreografia da hora que passa.

Outrora eu não podia compreender que minhas perguntas não obtivessem resposta; hoje em dia não compreendo que jamais tivesse admitido a hipótese de formular perguntas... Bem, eu não acreditava então em coisa alguma - só fazia perguntar.

Franz Kafka

segunda-feira, outubro 17, 2005

tes

"Um dia, se você deixar eu me aproximar de você, eu vou te amar de corpo, porque de resto eu já amo. Não sei se saberei como te amar, mas eu vou tentar, vou reaprender os caminhos, vou aprender a procurar o que não for evidente, afinal acredito que o sentimento faz da gente algo de mágico...

Sei lá! Só sei que não vou te cobrar muita coisa, apenas que você me ame como você sabe amar, não precisa me amar como eu te amo, porque acho difícil amar do meu jeito.

Amar do meu jeito é reaprender a enxergar coisas que não se enxergam com os olhos, mesmo que você tente... Amar do meu jeito coloca um véu sobre tudo o que você imaginava conhecer daquilo que para você é o sentimento amor. Não é algo tão simples como apenas dizer que ama...

Você perceberá o meu amor porque eu vou demonstrá-lo em sua plenitude e crueza através de pequenas coisas...Talvez num gesto, numa palavra impensada, num olhar, numa risadinha, numa lágrima, num silêncio contido só quebrado pelo suspiro de quem se sente entregue ao que virá... Sem esperas absurdas, sem achar especial demais o amor que um de nós sente, enxergando esse amor como ele é, de verdade, para cada um de nós.

Se um dia eu te amar, porque você me deixou te amar, vou querer demonstrar tudo o que tantas vezes demonstrei em palavras, farei você compreender que apesar da minha descrença em quase tudo, eu acredito em você, acredito no seu jeito de amar... no seu tempo...

Vou querer provar de você tudo o que você puder me dar, mesmo que não seja como eu imaginei que fosse... Mesmo que para isso eu tenha que pedir... Eu vou pedir, porque eu quero e saberei perceber que você também estará querendo, eu direi que sinto você de um jeito que ninguém sentiu ou sentirá, porque esse amor é um amor novo, com retiscências, limpo, fácil de amar porque é sincero e me fez querer mudar e me fez mudar.

Se um dia eu te amar, você poderá estar certo de que o meu amor não esperará aquilo que você não for capaz de me dar, mas esperará aquilo que você quiser me dar, porque você entenderá que a minha espera por você não me torna uma pessoa presa a você, mas ao que eu sinto e ao respeito pelo que vivemos até agora... Minhas respostas vêm sempre em riso e choro, porque é assim que eu sei dizer quando não encontro outra forma de dizer... "

a cOiSinHa eu!!

domingo, outubro 16, 2005

Sono tranqüilo


... Dom Quixote dentro de uma armadura brilhante, montado numa Harley Davidson ... Ou numa bicicleta ... Ou num Rocinante... Mas o Rocinante, na verdade... Não sei!! Como? De onde? Aqui, alí... Acolá... Vai saber! "A vida é um moinho..." Vivemos lutando contra moinhos inexistentes, mas é o que vale. Nem sempre conhecemos... Ou sempre conhecemos, mesmo não conhecendo... Mas o que é mesmo o conhecer? Vai saber... O importante mesmo é saber que existem pessoas que, mesmo desconhecidas, nos intrigam e nos fazem pensar... Nos fazem crer que ainda podemos nos tornar, realmente, aquilo que somos... Ou não, rs.


---Te Levanta.
O véio acorda com a ponta da botina cutucando-lhe o rim. Move a cabeça, os olhos encontram as calças e o cassetete.
---Deixa dormir, seu guarda.
A botina cutuca mais forte.
---Aqui não é cama.
Crianças se acercam. O véio não faz caso das moscas que comem suas feridas. Estica o braço ao guarda, pedindo ajuda para levantar-se. Ele lhe oferece a ponta do cassetete.
As crianças abrem passagem. O véio sai arrastando os pés inchados sobre a grama. Dois dias sem dormir. Em toda parte o importunam. Avista uma carrocinha de pipocas. Faz tempo que não põe nada na boca.
---Dá um pouco.
O homem está ocupado em atender aos fregueses, mas despeja uma colher de pipocas na mão do véio.
Ele atravessa a rua com as pálpebras arriadas, não ouve os palavrões que lhe dizem de um automóvel. A tarde começa a desaparecer.
Nem embaixo das pontes do riacho se pode dormir agora. Fizeram boa limpeza. Um guindaste extraiu o lôdo, dezenas de homens apararam a grama, os vagabundos foram expulsos. Dois dias sem ter onde descansar o corpo, cada vez mais difícil de carregar.
O véio vai avançando pela avenida. As pipocas apertadas na mão. Quando ele põe uma na boca, outras caem, deixando sobre a calçada o vestígio de sua caminhada. Os carros correm ao lado do véio. Outros cruzam as transversais.
A noite desce sem lua. O sono aperta mais. Não porque a noite tenha sido feita para o descanso. O véio dorme a qualquer hora, no lugar em que permitam. Mas, de uns tempos pra cá, simplesmente não há mais nenhum canto pra dormir. O porrete sempre cutuca nos rins. A cidade ficou sem vagabundos. Desde que limparam o riacho, trocaram o piso da praça e pintaram os bancos, o véio não consegue reencontrar seus iguais. Ontem sentado a beira do riacho,ouviu murmúrios vindos do fundo do rio. Ficou algum tempo parado, olhando no vazio. E se não fosse o guarda aparecer e mandá-lo embora, teria atendido o apelo das águas.
O véio continua na peregrinação que lhe impuseram. As pernas latejam, movem-se com maior dificuldade. O passo seguinte parece impossível.
Chega em outra praça. Estende-se no primeiro banco.
---Te levanta.
Geme, resmunga, mas põe-se de pé outra vez. Lambe o sal que as pipocas deixaram nos dedos. Nada ajuda a perder o sono. Continua a caminhada.
Agora a cidade está longe. O véio segue ao lado de um muro, no alto da ladeira. Quase sem fôlego avança curvado , fazendo um grande esforço. Enquanto estiver na cidade terá que marchar.
A brisa torna-se mais fria. O muro é longo, talvez seja o limite da cidade. O véio vai tentando novos passos. Se alcançasse o estado de graça, morreria em pé e em pé mesmo voaria para o outro mundo. Mas o muro acaba, e na sua frente aparece um barranco. O véio desce acaba vendo o outro lado do muro. Caminha uns passos e bate a canela numa laje, e a dor faz com que desperte mais.
Não consegue reconhecer onde está. Levanta e avança tropeçando nos estranhos objetos espalhados pelo terreno.

Uma coruja pia. O véio se agarra a um vulto gelado. E quando os olhos se acostumam à escuridão ele se vê abraçado a um túmulo de mármore. Adiante outros se sucedem. Grandes e pequenos. O véio sorri, admirado de como é que não tinha pensado nisso antes.
Continua se introduzindo. Na cidade dos mortos, as ruas são estreitas, as moradias de pouca altura. O véio passa por cima, encurta caminhos. Quanto mais para o fundo mais sossego.
Próximo a uns coqueiros, prepara-se para arriar o corpo. Como é que não tinha pensado antes? Não há quase vento no recanto escolhido. O sangue coagulou sobre o machucado das pernas. Quando o véio se prepara para deitar a carcaça, uma voz se faz ouvir por trás das sepulturas.
---É gente?---perguntam.
O véio estremece. Nem ali pode descansar. Já está de pé outra vez. Ontem deveria ter se atirado nas águas do rio. Tenta dizer que é gente. O vulto desconhecido torna-se nítido, envolto em trapos.
---Pode chegar---diz.
Meu nome é Solange, por favor queira me seguir.
O véio segue aquela estranha mulher. Diante deles surgem túmulos abertos, ocupados por gente que dorme. Gente das praças, das pontes, dos bancos. Um pouco afastada, uma enorme cruz de concreto.
Sem perder tempo, a mulher que se apresentou como Solange dá-lhe as costas e vai levantar a tampa de um túmulo, ali no meio dos outros. Lá de dentro, tira uma caveira, umas tíbias, umas costelas. Arremessa tudo bem longe. Depois voltando para junto do véio, aponta para o lugar e diz:
---Pode dormir.

Véiomuitovéio

sexta-feira, outubro 14, 2005

Um sonho num sonho

"Este beijo em tua fronte deponho!
Vou partir. E bem pode, quem parte,
francamente aqui vir confessar-te
que bastante razão tinhas, quando
comparaste meus dias a um sonho.
Se a esperança se vai, esvoaçando,
que me importa se é noite ou se é dia...
ente real ou visão fugidia?
De maneira qualquer fugiria.
O que vejo, o que sou e suponho
não é mais do que um sonho num sonho.
Fico em meio ao clamor, que se alteia
de uma praia, que a vaga tortura.
Minha mão grãos de areia segura
com bem força, que é de ouro essa areia.
São tão poucos! Mas, fogem-me, pelos
dedos, para a profunda água escura.
Os meus olhos se inundam de pranto.
Oh! meu Deus! E não posso retê-los,
se os aperto na mão, tanto e tanto?
Ah! meu Deus! E não posso salvar
um ao menos da fúria do mar?
O que vejo, o que sou e suponho
será apenas um sonho num sonho?"

Edgar Allan Poe

quinta-feira, outubro 13, 2005

Recomeça

Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga

quarta-feira, outubro 12, 2005

Vária

... Queria começar uma história que terminasse com final feliz, mas histórias não têm finais, são desdobramentos... Vão se fazendo a cada pensamento, a cada instante...
Contar uma história é estar preso a ela, ou melhor, é continuar... A gente continua sempre, essa é a história... Mas como continuar uma história se ela não conta muito, se ela não retrata o que se quer retratar, se ela não se interpreta?
Sei que nem sempre vivemos a história que queríamos ou sonhavamos viver, mas temos uma história, uma história única e vária... Já falei, um dia, em retalhos e em pontos de costura, continuo pensando da mesma forma: nos preocupamos com a escolha dos retalhos, com a disposição que daremos a eles, com a composição das formas e cores...
Sem nos darmos conta de que o resultado final é o que realmente importa, os pontos que unem os retalhos representam a continuidade da história, se forem folgados não darão consistência a ela, se forem muito apertados, a costura ficará repuxada, incômoda...
Nem sei direito sobre o que estou escrevendo, nem pensar consigo, mas estou tentando interpretar uma pequena parte da minha história, apenas tentando. Sou uma pessoa desavisada... Se eu tivesse prestado atenção em tudo o que minha nôna dizia quando, sentada em sua cama com sua máquina de costura manual no colo, costurava retalhos para fazer uma colcha...
Minha nôna era uma mulher sábia, brigava comigo quando eu insistia em colocar retalhos listrados junto com retalhos listrados, retalhos floridos junto com retalhos floridos... Cores em degradê... Ela dizia que quanto mais espalhados mais bonito ficaria o resultado final, dizia ela que a linha deveria ser fina, mas forte, para não desmanchar a costura...
Uma linha fina e forte da mesma cor do fundo, não da mesma cor dos retalhos... Afinal retalhos são muitos mas o fundo é um só... Um fundo claro é melhor que um fundo escuro fica mais fácil combinar a cores... Claridade é essencial para o resultado final... Minha nôna era ótima costureira, fazia colchas lindas, nem se viam os pontos...
Essa é uma história única e vária sem final... Muitos pontos para muitos retalhos num fundo único mas não muito claro... Queria começar uma história que terminasse com final feliz, mas histórias não têm finais, são desdobramentos...

a sOoL!!

terça-feira, outubro 11, 2005

E a noite...

"Quem, se eu gritasse, me ouviria de entre as ordens dos anjos? E mesmo que um me apertasse de repente contra o coração: eu morreria da sua existência mais forte. Pois o belo não é senão o começo do terrível, que nós mal podemos ainda suportar, e admiramo-lo tanto porque, impassível, desdenha destruir-nos. Todo o anjo é terrível. E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia valer? Nem anjos, nem homens e o intuitivo animal logo adverte que para nós não há amparo neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe, a árvore de alguma colina, que podemos rever cada dia; resta-nos a rua de ontem e o apego quotidiano de algum hábito que se afeiçoou a nós e permaneceu. E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços do mundo desgastar-nos a face - a quem se furtaria ela, a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o coração solitário? Será mais leve para os que amam? Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino. Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços para os espaços que respiramos - talvez os pássaros sentirão o ar mais dilatado, num voo mais comovido. Sim, as primaveras precisam de ti."

Rainer Maria Rilke

É isso...

...Desencantamento...

"Uma funesta cortina correu diante de mim, e o espectáculo da vida infinita metamorfoseou-se-me. Sem sugestão num túmulo eternamente aberto. Poder-se-a dizer: "é isso" quando tudo passa?, quando cada ser conserva tão pouco tempo a porção de existência que há nele, e é arrastado pela corrente, submerso, esmagado contra os rochedos?

Não há instante que não te devore, a ti e aos teus, não há instante em que não sejas, em que não devas ser, um destruidor. O mais inocente percurso custa a vida a milhares de pobres insetos, um só dos teus passos destrói o penoso trabalho das formigas e impele um pequenino mundo para o túmulo.

Ah!, não são as vossas grandes e raras catástrofes, essas inundações, esses tremores de terra que submergem as vossas cidades, que me impressionam: o que me consome o coração é essa força dominadora que se oculta sob todas as coisas, que nada produz que não destrua o que a rodeia, e não se destrua a si mesmo...

É assim que ando errante e atormentado. Céu, terra, forças ativas que me rodeiam, apenas vejo em tudo isso um monstro sempre devorador e sempre esfomeado."

J. W. Goethe

Que a palavra...

... Sobre palavras... apenas palavras.

"Que a palavra te redima do erro. Que a palavra seja o erro. Deslizas sobre a terra. Deslizas sobre as águas.

Tudo é veloz e extremo. Pó em torno da tua dor. Pó em torno do teu choro.O que te atinge em pleno voo.A cegueira que te atinge em pleno voo. Ergues-te para a mais secreta alegria de abandonares o teu corpo.

Que a palavra te redima do erro. Que a palavra seja o erro. A tua história, onde escreveste o indefinível do teu nome. Eras criança. Estendias as tuas asas. E as tuas asas faziam a imensa sombra sob a qual se abrigava o que era reconhecível e amável.

Deslizas sobre a terra. Deslizas sobre as águas.Tens o talento antigo de estenderes as tuas asas. Agora quebradas,para sempre quebradas. Já sem a amplitude do início,é no ocaso que escondes a tua vergonha.Por tua vontade, desejo e mágoa exumas a palavra do passado, a inocência que o não era.

Que a palavra te redima do erro. Que a palavra seja o erro."

Luís Quintais

Quem de dentro...


... Quem entende... o (meu?) amor... Entende?... Não sei!!

"Happy end

O meu amor e eu nascemos um para o outro agora só falta quem nos apresente.

Estilos trocados

Meu futuro amor passeia — literalmente — nos píncaros daquela nuvem.
Mas na hora de levar o tombo adivinha quem cai?

Quem de dentro de si não sai. Vai morrer sem amar ninguém

A parte perguntou para a parte qual delas é menos parte da parte que se descarte.
Pois pasmem:
A parte respondeu para a parte que a parte que é mais — ou menos — parte
é aquela que se reparte.

Passeio no bosque

O canivete na mão não deixa marcas no tronco da goiabeira...
Cicatrizes não se transferem "

Cacaso ou Antônio Carlos Ferreira de Brito

domingo, outubro 09, 2005

Cântico IV

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.

Cecília Meireles

O Amor é o sangue do sol dentro do sol

O amor é o sangue do sol dentro do sol. A inocência repetida mil vezes na vontade sincera de desejar que o céu compreenda.
Levantam-se tempestades frágeis e delicadas na respiração vegetal do amor. Como uma planta a crescer da terra. Algo dentro de qualquer coisa profunda. O amor é o sentido de todas as palavras impossíveis. Atravessar o interior de uma montanha. Correr pelas horas originais do mundo.
O amor é a paz fresca e a combustão de um incêndio dentro, dentro, dentro, dentro, dentro dos dias. Em cada instante de manhã, o céu a deslizar como um rio. À tarde, o sol como uma certeza.
O amor é feito de claridade e da seiva das rochas. O amor é feito de mar, de ondas na distância do oceano e de areia eterna. O amor é feito de tantas coisas opostas e verdadeiras. Nascem lugares para o amor e, nesses jardins etéreos, a salvação é uma brisa que cai sobre o rosto suavemente. Eu acreditava mesmo que o amor é o sangue do sol dentro do sol.

José Luis Peixoto in: http://silêncio.weblog.com

segunda-feira, outubro 03, 2005

Precisamos de Irmãos


Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências - Unesp - Marília/SP

... Esta mesinha quase cheia de livros tem o meu nome gravado... Você se lembra? Acredito que sim... Não era a minha favorita... Eu preferia aquela redonda que ficava na parte de cima, perto do banheiro e da janela grande... Lembra? Ou aquela do fundo, nas salinhas... Na verdade eu adorava essa biblioteca, eu conseguia encontrar qualquer livro... Conhecia-os pelo cheiro... Muita coisa aconteceu aí, dentro dessa biblioteca, muitos amigos... Uns ainda estão presentes, outros... no mundo... no telefone... no ar... Hoje recebi uma notícia triste... Me veio assim como coisa natural, um comentário, não sei! Aprendi a não acreditar em acasos, mas algumas vezes o "acaso" é uma boa explicação, quando não se encontra uma resposta ou não se quer tê-la... Sei lá! Incrível como certas coisas acontecem assim... Cansei de tentar entender... Mas estou triste e essa foto me faz reviver amigos que já não vivem... Mas eu sei que, como o meu nome ficou gravado nessa mesinha, os nomes desses amigos também devem estar gravados em outras tantas mesinhas... De certa forma estamos eternos... E isso me basta... por hoje...

Eu preciso de canções e amigos
De amor, de flores de abrigo
Numa astronave de papel

Preciso bater um papo com Caetano
Cometas com caudas de pano
Correndo tristes pelo céu
Há flores vagando incertas pelo espaço
São flores de titânio e aço
Que aumentam a cada semana
As flores há muito tempo cultivadas
Por muitos sonhos cultivadas
São russas ou americanas

Preciso fazer um pouco de sucesso
Não posso fumar meu progresso
Dependo de muito cantar
Eu quero a cor azul da aventura
Eu quero alguma coisa pura
Talvez eu não vá encontrar

Sei de sóis e de desertos frios
De mundos pálidos, vazios
De beijos e amores vãos
De estrelas
Caminhos novos vou seguindo
Chorando, dizendo, sorrindo
Que precisamos de irmãos
Que precisamos...

Rita Lee e Élcio Decário

A Memória é o Maior Tormento do Homem


"Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele não sabe o que é ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira fugaz por isto, nem melancólico nem enfadado. Ver isto desgosta duramente o homem porque ele vangloria-se da sua humanidade frente ao animal, embora olhe invejoso para a sua felicidade - pois o homem quer apenas isso, viver como animal, sem melancolia, sem dor; e o que quer entretanto em vão, porque não quer como o animal. O homem pergunta mesmo um dia ao animal: por que não falas sobre a tua felicidade e apenas me observas?"

Friedrich W. Nietzsche