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Música Brasileira

"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

domingo, outubro 16, 2005

Sono tranqüilo


... Dom Quixote dentro de uma armadura brilhante, montado numa Harley Davidson ... Ou numa bicicleta ... Ou num Rocinante... Mas o Rocinante, na verdade... Não sei!! Como? De onde? Aqui, alí... Acolá... Vai saber! "A vida é um moinho..." Vivemos lutando contra moinhos inexistentes, mas é o que vale. Nem sempre conhecemos... Ou sempre conhecemos, mesmo não conhecendo... Mas o que é mesmo o conhecer? Vai saber... O importante mesmo é saber que existem pessoas que, mesmo desconhecidas, nos intrigam e nos fazem pensar... Nos fazem crer que ainda podemos nos tornar, realmente, aquilo que somos... Ou não, rs.


---Te Levanta.
O véio acorda com a ponta da botina cutucando-lhe o rim. Move a cabeça, os olhos encontram as calças e o cassetete.
---Deixa dormir, seu guarda.
A botina cutuca mais forte.
---Aqui não é cama.
Crianças se acercam. O véio não faz caso das moscas que comem suas feridas. Estica o braço ao guarda, pedindo ajuda para levantar-se. Ele lhe oferece a ponta do cassetete.
As crianças abrem passagem. O véio sai arrastando os pés inchados sobre a grama. Dois dias sem dormir. Em toda parte o importunam. Avista uma carrocinha de pipocas. Faz tempo que não põe nada na boca.
---Dá um pouco.
O homem está ocupado em atender aos fregueses, mas despeja uma colher de pipocas na mão do véio.
Ele atravessa a rua com as pálpebras arriadas, não ouve os palavrões que lhe dizem de um automóvel. A tarde começa a desaparecer.
Nem embaixo das pontes do riacho se pode dormir agora. Fizeram boa limpeza. Um guindaste extraiu o lôdo, dezenas de homens apararam a grama, os vagabundos foram expulsos. Dois dias sem ter onde descansar o corpo, cada vez mais difícil de carregar.
O véio vai avançando pela avenida. As pipocas apertadas na mão. Quando ele põe uma na boca, outras caem, deixando sobre a calçada o vestígio de sua caminhada. Os carros correm ao lado do véio. Outros cruzam as transversais.
A noite desce sem lua. O sono aperta mais. Não porque a noite tenha sido feita para o descanso. O véio dorme a qualquer hora, no lugar em que permitam. Mas, de uns tempos pra cá, simplesmente não há mais nenhum canto pra dormir. O porrete sempre cutuca nos rins. A cidade ficou sem vagabundos. Desde que limparam o riacho, trocaram o piso da praça e pintaram os bancos, o véio não consegue reencontrar seus iguais. Ontem sentado a beira do riacho,ouviu murmúrios vindos do fundo do rio. Ficou algum tempo parado, olhando no vazio. E se não fosse o guarda aparecer e mandá-lo embora, teria atendido o apelo das águas.
O véio continua na peregrinação que lhe impuseram. As pernas latejam, movem-se com maior dificuldade. O passo seguinte parece impossível.
Chega em outra praça. Estende-se no primeiro banco.
---Te levanta.
Geme, resmunga, mas põe-se de pé outra vez. Lambe o sal que as pipocas deixaram nos dedos. Nada ajuda a perder o sono. Continua a caminhada.
Agora a cidade está longe. O véio segue ao lado de um muro, no alto da ladeira. Quase sem fôlego avança curvado , fazendo um grande esforço. Enquanto estiver na cidade terá que marchar.
A brisa torna-se mais fria. O muro é longo, talvez seja o limite da cidade. O véio vai tentando novos passos. Se alcançasse o estado de graça, morreria em pé e em pé mesmo voaria para o outro mundo. Mas o muro acaba, e na sua frente aparece um barranco. O véio desce acaba vendo o outro lado do muro. Caminha uns passos e bate a canela numa laje, e a dor faz com que desperte mais.
Não consegue reconhecer onde está. Levanta e avança tropeçando nos estranhos objetos espalhados pelo terreno.

Uma coruja pia. O véio se agarra a um vulto gelado. E quando os olhos se acostumam à escuridão ele se vê abraçado a um túmulo de mármore. Adiante outros se sucedem. Grandes e pequenos. O véio sorri, admirado de como é que não tinha pensado nisso antes.
Continua se introduzindo. Na cidade dos mortos, as ruas são estreitas, as moradias de pouca altura. O véio passa por cima, encurta caminhos. Quanto mais para o fundo mais sossego.
Próximo a uns coqueiros, prepara-se para arriar o corpo. Como é que não tinha pensado antes? Não há quase vento no recanto escolhido. O sangue coagulou sobre o machucado das pernas. Quando o véio se prepara para deitar a carcaça, uma voz se faz ouvir por trás das sepulturas.
---É gente?---perguntam.
O véio estremece. Nem ali pode descansar. Já está de pé outra vez. Ontem deveria ter se atirado nas águas do rio. Tenta dizer que é gente. O vulto desconhecido torna-se nítido, envolto em trapos.
---Pode chegar---diz.
Meu nome é Solange, por favor queira me seguir.
O véio segue aquela estranha mulher. Diante deles surgem túmulos abertos, ocupados por gente que dorme. Gente das praças, das pontes, dos bancos. Um pouco afastada, uma enorme cruz de concreto.
Sem perder tempo, a mulher que se apresentou como Solange dá-lhe as costas e vai levantar a tampa de um túmulo, ali no meio dos outros. Lá de dentro, tira uma caveira, umas tíbias, umas costelas. Arremessa tudo bem longe. Depois voltando para junto do véio, aponta para o lugar e diz:
---Pode dormir.

Véiomuitovéio

Um comentário:

Anônimo disse...

E agora? Pronto pro sono tranquilo...esse talvez seja também um dos nossos moinhos inexistentes, e o único que iremos enfrentar na verdade, inevitável. Enfrentar o "moinho" que somos nós mesmo? Bom, se tiver vocação prá avestruz até dá, mas é sempre bom deixar o lado quixotesco enfrentar os "moinhos".