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Música Brasileira

"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

segunda-feira, setembro 25, 2006

O Sono das Águas

brilliantly__by___elle__.0-a sOoL!!
"Há uma hora certa, no meio da noite, uma hora morta, em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio,
na lagoa,
no açude,
no brejão,
nos olhos dágua,
nos grotões fundos.

E quem ficar acordado, na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira parar a queda
e o choro, que a água foi dormir...

Águas claras,
barrentas,
sonolentas,
todas vão cochilar.

Dormem gotas,
caudais,
seivas das plantas,
fios brancos,
torrentes.

O orvalho sonha nas placas da folhagem.
E adormece até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Mas nem todas dormem, nessa hora de torpor

líquido
e inocente.

Muitos hão de estar vigiando,
e chorando,
a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono..."

Guimarães Rosa
'

domingo, setembro 24, 2006

Marcha

Colors_In_2_by_Nachkebia-a sOoL!!"As ordens da madrugada
romperam por sobre os montes:
nosso caminho se alarga
sem campos verdes
nem fontes.

Apenas o sol redondo
e alguma esmola do vento
quebraram as formas do sono
com a idéia do
movimento.

Vamos a passo e de longe;
entre nós dois anda o mundo,
com alguns vivos pela tona,
com alguns mortos
pelo fundo.

As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas,
mais minha dúvida
aumento.

Também não pretendo nada
senão ir andando à toa,
como um número que se arma
e em seguida se esboroa,
- e cair no mesmo poço
de inércia
e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma
pedras,
águas,
pensamento.

Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda,
amarga
como qualquer fruto
agreste.

Mesmo assim amarga
é tudo que tenho
entre o sol e o vento:

meu vestido,
minha música,
meu sonho
e meu alimento.

Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudades;
tenho visto muita coisa,
menos
a felicidade.

Soltam-se os meus dedos tristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
já me dá
contentamento.

Como tudo sempre acaba,
oxalá seja bem cedo!
A esperança que falava
tem lábios brancos de medo.

O horizonte corta a vida
isento de tudo,
isento...

Não há lágrima nem grito:
apenas
consentimento."

Cecília Meireles

sexta-feira, setembro 22, 2006

Os portadores de sonhos

"Em todas as profecias está prevista a destruição do mundo. Todas as profecias dizem que o homem criará sua própria destruição. Porem os séculos e a vida que sempre se renovam criariam também uma geração de amantes e sonhadores; homens e mulheres que não sonharam com a destruição do mundo, e sim com a construção do mundo das mariposas e dos rouxinóis. Desde pequeninos vinham marcados pelo amor. Por trás de sua aparência cotidiana guardavam a ternura e o sol da meia-noite. Suas mães os encontraram chorando por um pássaro morto e mais tarde muitos foram encontrados mortos como pássaros.

Estes seres coabitaram com mulheres translúcidas e elas ficaram prenhes de mel e de filhos reverdecidos por um inverno de carícias. Foi assim que proliferaram no mundo os portadores de sonhos, atacados ferozmente pelos portadores de profecias que falavam de catástrofes.

Foram chamados iludidos, românticos, pensadores de utopias, disseram que suas palavras eram velhas - e de fato eram porque a memória do paraíso é antiga no coração do homem - os acumuladores de riquezas os temiam e lançavam seus exércitos contra eles, mas os portadores de sonhos faziam amor todas as noites e do seu ventre brotava a semente que não somente portava sonhos mas que os multiplicavam e os fazia correr e falar. E assim o mundo criou de novo a sua vida da mesma forma que havia criado os que inventaram a maneira de apagar o sol.

Os portadores de sonhos sobreviveram aos climas gélidos e nos climas quentes pareciam brotar por geração espontânea. Quem sabe as palmeiras, os céus azuis, as chuvas torrenciais tiveram a ver com isso, a verdade é que, como formiguinhas operárias estes espécimes não deixavam de sonhar e construir mundos formosos, mundo de irmãos, de homens e mulheres que se chamavam companheiros, que se ensinavam a ler uns aos outros, consolavam-se diante da morte, se curavam e se cuidavam entre si, se ajudavam na arte de querer e na defesa da felicidade.

Eram felizes em seu mundo de açúcar e de vento e de todas as partes vinha gente impregnar-se de alento e de suas claras percepções e de lá partiam os que os haviam conhecido portando sonhos, sonhando com novas profecias que falavam de tempos de mariposas e rouxinóis, onde o mundo não haveria de findar na hecatombe mas onde os cientistas desenhariam fontes, jardins, brinquedos surpreendentes para fazer mais gostosa a felicidade do homem.

São perigosos - imprimiam as grandes rotativas
São perigosos - diziam os presidentes em seus discursos
São perigosos - murmuravam os artífices da guerra

Devem ser destruídos - imprimiam as grandes rotativas
Devem ser destruídos - diziam os presidentes em seus discursos
Devem ser destruídos - murmuravam os artífices da guerra.

Os portadores de sonhos conheciam seu poder e porsso nada achavam de estranho E sabiam também que a vida os havia criado para proteger-se da morte que as profecias anunciam E por isso defendiam sua vida até a morte. E por isso cultivavam os jardins de sonhos e os exportavam com grandes laços coloridos e os profetas obscuros passavam noites e dias inteiros vigiando as passagens e os caminhos procurando essas cargas perigosas que nunca conseguiram encontrar porque quem não tem olhos para sonhar não enxerga os sonhos nem de dia, nem de noite.

E no mundo sucedeu um grande tráfico de sonhos que os traficantes da morte não podiam estancar; em todas as partes há pacotes com laços de fita que só esta nova raça de homens pode ver e a semente destes sonhos não se pode detectar porque está envolta em corações vermelhos ou em amplos vestidos de maternidade onde pezinhos sonhadores sapateiam nos ventres que os carregam.

Dizem que a terra depois de os haver parido desencadeou um céu de arco-íris e soprou de fecundidade as raízes das árvores. Nós sabemos que os vimos. Sabemos que a vida os criou para proteger-se da morte que as profecias anunciam."

Gioconda Belli

"A chama de uma vela" (fragmento)

"(...)

A lâmpada vela,

e portanto vigia.

Quanto mais estreito é o fio de luz,

mais penetrante é a vigilância.

(...)

A lâmpada é um signo de uma grande espera.

Pela luz da casa distante,

a casa vê,

vela,

vigia,

espera.

(...)

Por sua luz,

a casa é humana.

Ela vê como um homem.

É um olho aberto para a noite.

(...)"

Painting_of_Light_by_Andross01-a sOoL!!

"Assim se fala da lâmpada como se poderia falar da luz que alumia os caminhos e que nos fascina, a luz de uma vela, tendo esta também um duplo sentido, o de alumiar e de aquecer. O que nos fascinará tanto numa simples vela?!

O seu lado romântico, que herdamos dos nossos antepassados oitocentistas? A cor vibrante e dilacerante que encerra? O perigo que existe ao acendê-la e torná-la chama? O simples derreter da cera em seu redor que cria montanhas e estalactites que, de forma natural, não podemos criar? O alumiar do caminho? Uma forma de obter luz natural? O misticismo da vela...!!!!

Que vejo eu, tu e todos numa vela? É um fascinio. E a luz acessa,... num quarto escuro, ... em noite cerrada ..., fala-nos de solidão. Remete-nos para o nosso passado de histórias encantadas. Transporta-nos para um outro mundo, o da imaginação e olhando lá bem do fundo ficamos à espera que o sonhador noturno, ou desesperado diurno, apague a luz e vá descansar num sono profundo. (...)"

Gaston Bachelard

quinta-feira, setembro 21, 2006

A implosão da verdade

Smoke_Dance_2_by_EvilxElf-a sOoL!!

Mentiram-me.
Mentiram-me ontem e hoje mentem novamente.
Mentem de corpo e alma, completamente.

E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.

Não mentem tristes.
Alegremente mentem.
Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem.
Mentem e calam.
Mas suas frases falam.
E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver a verdade
em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil e para alguns é cara e escura.

Mas não se chega à verdade pela mentira,
nem à democracia pela ditadura.

Evidente/mente a crer nos que me mentem

uma flor nasceu em Hiroshima

e em Auschwitz havia um circo permanente.

Mentem.
Mentem caricatural- mente.

Mentem como a careca mente ao pente,
mentem como a dentadura mente ao dente,
mentem como a carroça à besta em frente,
mentem como a doença ao doente,
mentem clara/mente como o espelho transparente.

Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente ao ver a nódoa sobre o linho.
Mentem com a cara limpa e nas mãos o sangue quente.
Mentem ardente/mente como um doente em seus instantes de febre.
Mentem fabulosa/mente
como o caçador que quer passar gato por lebre.
E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador com a armadilha.

E assim cada qual mente industrial/mente,
mente partidária/mente,
mente incivil/mente,
mente tropical/mente,
mente incontinente/mente,
mente hereditária/mente,
mente,
mente,
mente.

E de tanto mentir tão brava/mente
constróem um país de mentira
— diária/mente.

Mentem no passado.

E no presente passam a mentira a limpo.
E no futuro mentem novamente.

Mentem fazendo o sol girar em torno à terra medieval/mente.

Por isto, desta vez, não é Galileu quem mente,
mas o tribunal que o julga herege/mente.

Mentem como se Colombo partindo do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente.

Mentem desde Cabral, em calmaria, viajando pelo avesso,
iludindo a corrente em curso,
transformando a história do país
num acidente de percurso.

Tanta mentira assim industriada me faz partir para o deserto
penitente/mente,
ou me exilar com Mozart musical/mente
em harpas e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.

Penso nos animais que nunca mentem, mesmo se têm um caçador à sua frente.

Penso nos pássaros cuja verdade do canto nos toca matinalmente.

Penso nas flores cuja verdade das cores escorre no mel silvestremente.

Penso no sol que morre diariamente jorrando luz,

embora tenha a noite pela frente.

Página branca onde escrevo.
Único espaço de verdade que me resta.
Onde transcrevo o arroubo,
a esperança,
e onde tarde ou cedo
deposito meu espanto
e medo.

Para tanta mentira só mesmo um poema explosivo-conotativo
onde o advérbio e o adjetivo não mentem ao substantivo
e a rima rebenta a frase
numa explosão da verdade.

E a mentira repulsiva se não explode pra fora
pra dentro explode implosiva.

Affonso Romano de Sant'Anna

O homem, as viagens...

Bad_Moon_by_voras-a sOoL!!

O homem, bicho da Terra tão pequeno

chateia-se na Terra

lugar de muita miséria e pouca diversão

faz um foguete, uma cápsula, um módulo

toca para a Lua

desce cauteloso na Lua

pisa na Lua

planta bandeirola na Lua

experimenta a Lua

coloniza a Lua

civiliza a Lua

humaniza a Lua

Lua humanizada: tão igual à Terra

o homem chateia-se na Lua

Vamos para Marte, ordena à suas máquinas.

Elas obedecem, o homem desce em Marte

pisa em Marte

experimenta

coloniza

humaniza Marte com engenho e arte

Marte humanizado, que lugar quadrado

vamos a outra parte?

Claro diz o engenho

sofisticado e dócil.

Vamos à Vênus

o homem põe o pé em Vênus,

Vê o visto, é isto?

Idem
Idem
Idem

O homem funde a cuca se não for à Júpiter

proclamar justiça com injustiça

repetir a fossa

repetir o inquieto

repetitório

Outros planetas restam para outras colônias.

o espaço todo vira Terra-a-terra.

o homem chega ao Sol ou dá uma volta

só para te ver?

Não vê que ele inventa

roupa insiderável de viver no Sol

põe o pé e:

Mas que chato é o Sol, falso touro espanhol domado.

Restam outros sistemas fora

do solar a colonizar.

ao acabarem todos

só resta ao homem

(estará equipado?)

a dificílima dangerosíssima viagem

de si mesmo a si mesmo:

por o pé no chão

do seu coração

experimentar

colonizar

civilizar

humanizar

o homem

descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas

a perene, insuspeitada alegria

de con-viver.

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, setembro 18, 2006

Poema

Girl_and_Bird_II_by_kayceeus-a sOoL!!
"Podemos falar dos sentimentos, descrever as impressões que nos ameaçam, e revelar o vazio que se descobre na ausência um do outro: nada, porém, é tão inquietante como a dúvida, o não saber de ti, ouvir o desânimo na tua voz, agora que a tarde começa a descer e, com ela, todas as sombras da alma.

É verdade que o amor não é apenas um registo de memórias. É no presente que temos de o encontrar: aí, onde a tua imagem se tornou mais real do que tu própria, mesmo que nada te substitua.

Então, é porque as palavras são supérfluas; mas como viver sem elas? Como encontrar outra forma de te dizer que o amor é esta coisa tão estranha, dar o que nunca se poderá ter, e ter o que está condenado a perder-se?

A não ser que guardemos dentro de nós, num canto de um e outro a que só nós chegamos, sabendo que esse pouco que nos pertence é tudo o que cabe neste sentimento."

Nuno Júdice

domingo, setembro 17, 2006

Balancete

RicardoDaCosta
Correr

por estas estradas longas correr
por estas palavras ágeis
corretas

nada é o nosso tema

e

motivo

-oh maya: ilusão é o teu nome-
ai dos que buscam a perfeição em tempos pardacentos!

Correr

por estas estradas vastas como a vida
a suportar além da própria dor intransferível

a

desgraça nacional.

Antônio Brasileiro

segunda-feira, setembro 11, 2006

Variações do branco

"Ergues o olhar:

Surpreendes por instantes essa hora em que o mundo envelhece:

Tênues as variações do branco parecem dissolvê-lo
numa longínqua música,
anterior à chuva ou será então a imagem submersa
de um filme
a preto e branco

Há próximo um branco vibrante:

O da cal ainda recente
mas que a umidade salina já a espaços mordeu,
recortando as feridas cinza
na varanda a que vens.

Não há ninguém aqui.
Quem te chame, digo.
Há o branco baço na parede que em frente em vão
separa
rua
e
praia.

Tendo já transposto essa fronteira incerta ou erguendo-se para lá dela
há o branco pobre da areia:

PunchLoveDrunk-a sOoL!!

As dunas plenárias sustentam os corpos deitados
de mar
e céu.
Aí é agora o grande branco:
O clarão velado e difuso que guarda e distribui a memória embaciada
do azul
e do
verde,
do
ouro
e da
prata
— uma lembrança vã.

Tu escreves no visível do mundo
essa névoa branca e desolada
que o motor da paisagem produz.
As folhas do ar são como se fossem as levíssimas pétalas,
as vagas sílabas de uma neve
– e essa névoa engolfa,
atrasa
e
apaga
na travessia os simulacros
das
coisas
supostas
e
imaginadas
que o mundo te envia
enquanto
esperas
por
alguém
que
não virá."

Manuel Gusmão

Embora entedesses nada...

falling___by_kleinerkampfhamster

"Embora me escutasses nada saberás de mim
e fosses à janela
e embora olhasses não me vês que passo
e digas um adeus pequeno
e embora às vezes já sentisses náusea
e afinal te inclinas
e embora seca embora secamente
e finjo que não ligo
e embora as baças tênues luzes dás
e eu por timidez sempre apagado
e embora as marés-vivas batendo
e amámos nisso o Verão
e embora lerda a caneta se apure
e tu não entendesses nada
não entendesses nada."

Fernando Assis Pacheco

sábado, setembro 09, 2006

A índole da multidão

"Há suficiente Traição, Ódio, Violência,
Absurdo no Ser Humano Comum para abastecer qualquer exército
A Qualquer Momento.

E os Melhores Assassinos são aqueles que Pregam Contra o Assassinato.
E os Melhores no Ódio são aqueles que Pregam o Amor.
E os Melhores na Guerra - enfim- são Aqueles que pregam a Paz.

Aqueles Que Pregam Deus
Precisam de Deus
Aqueles Que Pregam a Paz
Não Têm Paz.
Aqueles que pregam o Amor
Não têm Amor

Cuidado com os Pregadores
Cuidado com os Conhecedores.
Cuidado com aqueles que estão Sempre a ler Livros
Cuidado com aqueles que ou Detestam a Pobreza ou se Orgulham Dela

Cuidado com aqueles rápidos em Elogiar
Pois Precisam de Louvores em retorno
Cuidado com aqueles rápidos em Censurar:
Esses Temem o que Desconhecem
Cuidado com aqueles que procuram constantemente Multidões;
Eles Não São Nada Sozinhos

bliss_by_CocoChantal-a sOoL!!

Cuidado:

O Homem Vulgar
A Mulher Vulgar
Cuidado com o Amor Deles

O seu Amor é Vulgar, busca Vulgaridade
Mas Há Força No Seu Ódio
Há Força Suficiente
No Seu Ódio Para Matar,
Para Matar Qualquer Um.

Não Esperando a Solidão
Não Entendendo a Solidão
Eles Tentarão Destruir
Qualquer Coisa
Que defira
Deles Mesmos

Não Sendo Capazes
De Criar Arte
Eles Não
Entenderão a Arte

Considerarão o Seu Fracasso
Apenas Como uma Falha
Do Mundo

Não Sendo Capazes De Amar Plenamente
Eles Acreditarão que o Seu Amor é Incompleto
Então Odiar-te-ão
E o Seu Ódio Será Perfeito
Como Um Diamante Brilhante
Como Uma Faca
Como Uma Montanha
Como Um Tigre
Como Cicuta."
Charles Bukowski

Reconhecimento à Loucura


"Já alguém sentiu a loucura vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objetos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exatamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.

Bruise_by_thegirlinthebigbox-a sOoL!!

E depois mostrar-nos o que há-de vir muito melhor do que está? E dar-nos a cheirar uma cor que nos faz seguir viagem sem paragem nem resignação? E sentirmo-nos empurrados pelos rins na aula de descer abismos e fazer dos abismos descidas de recreio e covas de encher novidade? E fazer frente ao impossível atrevidamente e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe a ponto do impossível ficar possível? E quando tudo parece perfeito poder-se ir ainda mais além? E isto de desencantar vidas aos que julgam que a vida é só uma? E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?

Tu Só,
loucura,
és capaz de transformar o mundo
tantas vezes quantas sejam as necessárias
para olhos individuais.
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões
que hão-de viver juntas.

Tudo,
exceto tu,
é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar a quem tas vier buscar.

José de Almada Negreiros

sexta-feira, setembro 08, 2006

As flores morrem ...

she_never_sleeps_by_raun-a sOoL!!
"(...) Caminhamos até este lugar. Fecho os olhos para conhecer o que se torna igual a uma promessa. As flores morrem nas jarras e deixam cair ao longo dos caules um peso estranho. Tu reparaste na sua transparência? Como era íntimo esse movimento capaz de vir percorrê-las para ser menor esta destruição. É assim que principia a perda do mesmo brilho que existe à nossa volta. Já nada espero e, por isso, deixei que de mim o tempo se afastasse. De longe chega uma voz e ela procura os lábios vazios até ficar dispersa pela névoa. É talvez uma única palavra. Há quem julgue que se trata da pronúncia que passa por uma ferida. (...)"

Fernando Guimarães

No primeiro dia

"Lembras-te quando as romãs
se apertavam contra o peito?

Era maio.
Era o sul.

Quem se lembra de nós?
Quem nos respira?
Quem abre as cortinas e espreita,
a saber de nós?

Curaste o rio da rebelião.
Curaste a seiva.
Vês como cresce em esplendor?
Desde maio que floresce.

Desde maio.
Desde maio que se desfaz em lágrimas.

Como é sentir o cordão a romper-se?
Como é sentir a terra tão longe,
que dá vontade de cair
só para experimentar o delírio da queda,
a solidão do ar que se respira desfeito em partículas?

Não sei onde me fixar,
tenho o olhar perdido,
o cabelo em desalinho,
as mãos agitadas à procura.

Que dizer agora que a solidão bate à porta?
Que te dizer, amor, senão que a vida se pode emendar,
que a vida se pode redimir e retomar o sonho?
Que te dizer senão que o meu sangue se despede
e já nada resta a não ser um acordar?
Um acordar onde tu apedrejas aos anjos
e me queimas os olhos no fogo.

Desintegra-te,

respira quando doer,

dilacera-te.

Dilacera-te, meu amor.

E de repente acontece sentir.

Era maio.
As giestas de maio:
que beleza, que sabor tão doce!

Se eu soubesse partilha-lo contigo
o mundo acabava aqui,
no primeiro dia."

Ingrid Choren

quinta-feira, setembro 07, 2006

Dos segredos...

Appel_au_Ciel_by_anacoluthe-a sOoL!!"Se a noite se perder em ritmos de água, eu morrerei.
Não há palavra mais doce que aquela que se despe
lentamente na baía, na nostalgia de si mesma.

Outrora era a evidência do verso, rumor de aves,
lagos espirais caminhos por entre fontes e azuis
danças de deus nos longínquos areais, mas as
incertezas acumularam-se depois do sono, lembranças
da infância, da fronteira, dos açudes ruidosos.

Eu morrerei se ouvir de novo essa voz, por isso
afastai-a célere dos oceanos,
das portas entreabertas,.
Essa palavra é doce e mortífera: amai-a

Longe de mim onde o silvo, o alarme das estações, é uma
espada, um gume à deriva no corpo.
Ficarei entre sinais, escombros,
longe das margens dos lagos, leve."

Francisco José Viegas

Não esses especialmente...

Morremos de vez, é certo.
Por isso, a vida é uma coisa,
De que acontece, ou não, gostar.

Mas, sendo assim, porque me acontece
Gostar do mato vermelho,
Da erva cinzenta e do céu verde cinza?

Good_Bye____by_Gwarf-a sOoL!!
E mais? Mas, vermelho,
Cinzento, verde, porquê, especialmente?
Não foi isso que eu disse:

Não esses especialmente. Apenas esses.
Gostamos do que acontece gostarmos.
Gostamos da maneira como o vermelho cresce.

Não tem nenhuma importância.
Acontecer gostar é uma das maneiras
Que as coisas têm de acontecer.

Wallace Stevens

O vermelho por dentro

Forgotten_love_by_Batteryhq-a sOoL!!
"Estão envolvidos em corpos negros
vermelhos por dentro.
Estão num barco sobre o mar
e o mar é negro.

É de noite.
O céu está negro
e sobre a água negra
tudo é vermelho por dentro.

Os corpos eram negros sobre o mar
a água era de noite
não se via o vermelho por dentro
os corpos não se viam
eram barcos com os ventres todos negros
e as línguas eram de águas muito rentes.

A sangue não sabia
não se via o vermelho por dentro
o céu a água envolvia tudo
envolvia nos vermelhos dentros
e os mares
todas as noites estavam negros
negros por dentro.

E a água volvia pelo céu
tão negra
e à noite
por dentro do mar todo vermelho
a noite era vermelha
e os barcos negros por dentro.

E nos corpos a água negra era vermelha
por dentro
e eles estavam envolvidos

e ..."

Ana Hatherly

terça-feira, setembro 05, 2006

Pedra Filosofal

AlexandreCosta-a sOoL!!
"Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltos, como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, Infante, caravela quinhentista, que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora,cisão de átomo, radar, ultra-som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida. Que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança."

António Gedeão

Rasgando caminhos...

"Faz de conta que o tempo voou. Estrangulou o dia, rasgando caminhos confusos da cidade invisível. Depois enrosca-te na penumbra, afasta as sombras gravadas misteriosamente e entre insônias de horas perdidas, esquece-me pouco a pouco. Desfaz as memórias e vai secando as idéias, encharcadas do perfume acumulado na raiva das minhas veias.

Debruça o olhar no presente, abre a janela e engole as luzes das noites. Saboreia cada sussurro oculto, nas horas que ouves na grande solidão. Adormece na inquietude das paredes brancas, cheias de falsos sonhos, enquanto fugirei de mim silenciosamente.

Desce de novo os teus olhos, ao fascínio ardente da água teimosa, do mar que nos fez sentir vivos, numa prolongada espera.

É então tempo de caminhar, voar no esquecimento das emoções, partir sem som."

L. Maltez

Ontem é uma árvore de longas ramagens...

Golden_sommer_day_by_Floriandra-a sOoL!!
"Os meus pensamentos foram-se afastando de mim, mas, chegado a um caminho acolhedor, repilo os tumultuosos pesares e detenho-me, de olhos fechados, enervado num aroma de afastamento que eu próprio fui conservando, na minha pequena luta contra a vida. Só vivi ontem. Ele tem agora essa nudez à espera do que deseja, selo provisório que nos vai envelhecendo sem amor.

Ontem é uma árvore de longas ramagens, e estou estendido à sua sombra, recordando.

De súbito, contemplo, surpreendido, longas caravanas de caminhantes que, chegados como eu a este caminho, com os olhos adormecidos na recordação, entoam canções e recordam. E algo me diz que mudaram para se deter, que falaram para se calar, que abriram os olhos atónitos ante a festa das estrelas para os fechar e recordar...

Estendido neste novo caminho, com os olhos ávidos florescidos de afastamento, procuro em vão interceptar o rio do tempo que tremula sobre as minhas atitudes. Mas a água que consigo recolher fica aprisionada nos tanques ocultos do meu coração em que amanhã terão de se submergir as minhas velhas mãos solitárias (...)"

Pablo Neruda

domingo, setembro 03, 2006

The carnival is over...

Mysterium_Iniquitatis_by_BlueBlack.-a sOoL!!"Lá fora...

Nuvens de chuva se reúnem
Passam silenciosas pela empoeirada avenida
Onde as flores erguem seus frágeis caules
E elas podem, uma a uma, alcançar e beijar o céu

São movidas por um estranho desejo

Invisível ao olho humano

Alguém chama...

Lembro-me de quando você segurou a minha mão
Brincávamos no parque quando o circo chegou à cidade

Olhe... Veja!

Nada mais existe...

Lá fora...

O circo se reúne
Movem-se silenciosos pela avenida que a chuva varreu
A procissão seguiu em frente
A balbúrdia terminou
As fabulosas atrações estão deixando a cidade

São movidos por um estranho desejo

Invisível ao olho humano

O carnaval se foi...
Nós nos sentamos e assistimos,

Como se a Lua novamente nascesse...

Pela primeira vez..."

Dead Can Dance - Lisa Gerrard e Brendan Perry- Tradução livre

sexta-feira, setembro 01, 2006

A vida

AlbaLuna-a sOoL!!
"(...)

A vida é o dia de hoje,
a vida é ai que mal soa,
a vida é sombra que foge,
a vida é nuvem que voa;
a vida é sonho tão leve
que se desfaz como a neve
e como o fumo se esvai:

A vida dura um momento,
mais leve que o pensamento,
a vida leva-a o vento,
a vida é folha que cai!

A vida é flor na corrente,
a vida é sopro suave,
a vida é estrela cadente,
voa mais leve que a ave:

Nuvem que o vento nos ares,
onda que o vento nos mares
uma após outra lançou,
a vida – pena caída
da asa de ave ferida -
de vale em vale impelida,
a vida o vento a levou!"

João de Deus