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Música Brasileira

"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

domingo, agosto 27, 2006

A menina...

secrets_beneath_by_horrificbeauty-a sOoL!!
A menina translúcida passa.
Vê-se a luz do sol dentro dos seus dedos.
Brilha em sua narina o coral do dia.

Leva o arco-íris em cada fio do cabelo.
Em sua pele, madrepérolas hesitantes
pintam leves alvoradas de neblina.

Evaporam-se-lhe os vestidos, na paisagem.
É apenas o vento que vai levando o seu corpo pelas alamedas.
A cada passo, uma flor, a cada movimento, um pássaro.

E quando pára na ponte, as águas todas vão correndo,
em verdes lágrimas para dentro dos seus olhos.

Cecília Meireles

Impossível

Hope_in_darkness_by_jantar_mantar-a sOoL!!Impossível cantar-te
como cantei o amor adolescente
colorindo de ingenuidade
paisagens e figuras reduzindo-o
à mesma atmosfera rarefeita
do sonho sem percurso no real
Impossível tomar o íngreme caminho
da aventura mental
ou imaginar-te pelo fio estéril
da solitária imaginação

Tão-pouco desenhar-te como estrela
neste céu infame
dizer-te em linguagem de jornal
ou levar-te à emoção dos outros
pela voz contrafeita da poesia

Impossível

Impossível não tentar dizer-te
com as poucas palavras que nos ficam
da usura dos dias
do grotesco discurso que escutamos
proferimos
transidos de sonho no ramal do tempo
onde estamos como ervas
pedrinhas
coisas perfeitamente inúteis
pequenas conversas de ferrugem de musgo
queixas
questiúnculas
arrotos comoventes

Alexandre O'Neill

Gestos

let_me_know_the_way_by_nFeel-a sOoL!!
"Vivo na esperança de um gesto que hás-de fazer.

Gesto, claro, é maneira de dizer, pois o que importa é o resto que esse gesto tem de ter.

Tem que ter sinceridade sem parecer premeditado; e tem que ser convincente, mas de maneira diferente do discurso preparado.

Sem me alargar, não resisto à tentação de dizer que o gesto não é só isto...

Quando tu, em confusão, sabendo que estou à espera, me mostras que só hesitas por não saber começar, que tentações de falar!

Porque enfim, como advinhas, esse gesto eu sei qual é, mas se o disser, já não é..."

Reinaldo Ferreira

Um dia branco

Moving_on___by_jantar_mantar-a sOoL!!
Dai-me um dia branco, um mar de beladona
Um movimento
Inteiro, unido, adormecido
Como um só momento.

Eu quero caminhar como quem dorme
Entre países sem nome que flutuam.

Imagens tão mudas
Que ao olhá-las me pareça
Que fechei os olhos.

Um dia em que se possa não saber.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Pequenas coisas


"Falar do trigo e não dizer o joio.

Percorrer em voo raso os campos sem pousar os pés no chão.

Abrir um fruto e sentir no ar o cheiro da alfazema.

My_little__dreamy_world_by_mmenathalie-a sOoL!!
Pequenas coisas, dirás, que nada significam perante esta outra, maior:

Dizer o indizível.

Ou esta:

Entrar sem bússola na floresta e não perder o rumo.

Ou essa outra,

maior que todas e cujo nome por precaução omites.

Que é preciso, às vezes, não acordar o silêncio."

Albano Martins

Saberes...

Like_An_Angel_by_TOYIB-a sOoL!!
Podíamos saber um pouco mais da morte.
Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais depressa.

Podíamos saber um pouco maisda vida.
Talvez não precisássemos de viver tanto,
quando só o que é preciso é saber que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais do amor.
Mas não seria isso que nos faria deixar de amar
ao saber exatamente o que é o amor,

Ou amar mais ainda ao descobrir que,
mesmo assim,
nada sabemos do amor.

Nuno Júdice

sexta-feira, agosto 25, 2006

Das casas e dos homens...

Samara_s_eyes_by_NanFe-a sOoL!!

"Eu falo das casas e dos homens, dos vivos e dos mortos:
do que passa e não volta nunca mais...
Não me venham dizer que estava materialmente previsto,
ah, não me venham com teorias!
Eu vejo a desolação e a fome, as angústias sem nome,
os pavores marcados para sempre nas faces trágicas das vítimas.
E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,
uma insignificante parcela da tragédia.
Eu, se visse, não acreditava.
Se visse, dava em louco ou profeta,
dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,
- mas não acreditava!
Olho os homens, as casas e os bichos.
Olho num pasmo sem limites, e fico sem palavras,
na dor de serem homens que fizeram tudo isto:
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,
esta lama de sangue e alma, de coisa a ser,
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,
se o ódio sequer servirá para alguma coisa...
Deixai-me chorar - e chorai!
As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,
de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição
e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,
por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio,
por um segundo seremos os mortos e os torturados,
os aleijados para toda a vida,
os loucos e os encarcerados,
seremos a terra podre de tanto cadáver,
seremos o sangue das árvores,
o ventre doloroso das casas saqueadas,

- sim, por um momento seremos a dor de tudo isto...

Eu não sei porque me caem as lágrimas,
porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,
eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,
eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,
eu que estou na minha casa sossegada,
eu que não tenho guerra à porta,
- eu porque tremo e soluço?
Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós?
Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:
as ruas são ruas com gente e automóveis,
não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,
e a miséria é a mesma miséria que já havia...
E se tudo é igual aos dias antigos,
apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir,
eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,
sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,
sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,

uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada..."

Adolfo Casais Monteiro

Ervas daninhas...

Dollop_by_AriyaSnow-a sOoL!! "(...)

Restam apenas ervas daninhas? Pior ainda: as ervas daninhas estão de tal maneira emaranhadas nas boas que não se consegue enfiar as mãos no meio e puxar. Dir-se-ia que se criou um pacto de cumplicidade entre as ervas de semeadura e as ervas selvagens, um afrouxamento das barreiras impostas pelas desigualdades de nascimento, uma tolerância resignada em relação à degradação. Algumas ervas espontâneas, por si só, não têm de modo algum um aspecto maléfico e insidioso. Porque não admiti-las no número das que pertencem ao prado de pleno direito, integrando-as na comunidade das que foram cultivadas?

(...)"

Italo Calvino

quinta-feira, agosto 24, 2006

Libertação de um anjo

ethereal_infringement_by_SubterfugeMalaises-a sOoL!! "seqüências

(O que será preciso fazer para mudar
para mudar não se sabe o quê.

(Do que se está à espera de chegar
para chegar não se sabe onde.)

O[um] anjo desencantou-se
Sumiu-se evaporou-se

Libertou o seu espírito

O anjo não era livre
As suas asas eram grilhetas.

O descanso, finalmente.
O anjo pode enfim dormir
Sentiu pela primeira vez prazer.

continuações
hey_little_angel_by_RedMagda-a sOoL!!

Desperto de corpo
E de sentidos
Ouve e sai sem medos

Desde que saiba e sinta.

Sai por montes e vales,
De costas voltadas aos outros
E a si próprio

O que sente,
Só por poemas
Narrações da imaginação.
Por ferro e fogo,
Trovões,

Relâmpagos que ofuscam os olhos
Cegueiras, assumidas
Vidas sumidas
Esvaziadas,
Perdidas."

Carlos Veríssimo

Rostos...

KatrinAdam-a sOoL!!
"Acontece por vezes não encontrar um olhar que sirva de depósito para os meus sentimentos.
Um rosto que aguardasse o tempo obscuro da minha vida.
Ou um campo corporal que resgatasse o que é verdade nos meus atos.
Escuto sempre o movimento de alguém a gotejar na minha direção, como se as palavras que indicam os seus passos enlouquecidos não encontrassem o meu coração.
Porque há palavras que se perdem na forma de as pensar.
E porque um olhar sem distância é a cegueira natural da humanidade.
Rostos exaustivos, granulados em consequência da proximidade da alma.
O meu olhar homicida a justificar uma falta de vida.
Como se eu me transformasse num animal parecido com os olhos de quem escrevo.
Um animal cego que transporta o perfume de uma palavra no interior do teu olhar. "

Fernando Esteves Pinto in: Escrita Ibérica

terça-feira, agosto 22, 2006

A Consolação da Filosofia (exerto)

ArturK-a sOoL!!
" (...) 'Peço-te, portanto que agora me digas se achas que o acaso existe realmente e, caso exista, em que ele consiste. Apresso-me a cumprir minha promessa e abrir-te o caminho que leva diretamente à tua pátria. Ora, essas questões, embora seu entendimento seja útil desviarão um pouco do nosso caminho, e temo que tais desvios te fatiguem e talvez até te impeçam de percorreres até o fim o caminho reto.'

'Não', disse eu, 'não tens nada a temer, pois essa será para mim uma ocasião de refrear minha inquietude e de me instruir sobre temas que tanto me interessam. Cada ponto de tua argumentação me parecerá irrefutável, e nenhuma das conclusões será posta em dúvida.'

'Vou então satisfazer o teu desejo', e logo começou da seguinte maneira:

'Se definirmos o acaso como um acontecimento produzido acidentalmente e não por uma seqüência de qualquer tipo de causa, longe de consentir na definição, considero essa palavra absolutamente desprovida de sentido, salvo a significação da realidade a que ela se refere. Com efeito, se Deus obriga todas as coisas a se dobrarem às suas leis, onde haveria lugar para o acaso? Nada pode ser feito a partir do nada: esse é um axioma cuja verdade jamais foi contestada, embora os antigos o fizessem princípio, não do princípio criador, mas da matéria criada, isto é, da natureza sob todas as suas formas. Ora, se um fato se produzisse sem causa, poderíamos dizer que ele surgiu do nada. E, se isso não pode ocorrer, também o acaso, tal como o acabamos de definir, não pode se produzir.'

'Mas quê!', disse eu, 'não há nada que possa ser chamado de acaso ou acidente'? Ou existirá uma outra realidade, que escapa a compreensão dos homens, à qual possam corresponder essas palavras?'

Ela respondeu: 'Aristóteles, a quem eu tanto amo, nos fornece na sua Física uma definição ao mesmo tempo breve e próxima da verdade.'

'E qual é?', perguntei.

'Ele diz que toda vez que uma ação é realizada com um determinado fim, mas algo além do que estava sendo procurado acontece por uma razão ou outra, isto se chama acaso, como por exemplo quando alguém cava o solo para fazer um plantio e encontra ali um tesouro que estava escondido. Pode-se crer com certeza que isso aconteceu fortuitamente e, no entanto, o que ocorre não provém do nada; o acontecimento tem causas próprias, cujo conteúdo imprevisto e inesperado parece ter sido produzido pelo acaso. Pois, se o agricultor não tivesse sulcado o solo e o homem que colocou ali seu dinheiro não o tivesse escondido no local, o ouro nunca teria sido descoberto. Tais são portanto as causas desse ganho fortuito que resulta de uma série de circunstâncias e não de uma ação intencional. Com efeito, nem aquele que enterrou o ouro nem aquele que revolveu seu campo agiram com a finalidade de que esse ouro fosse descoberto; mas, como eu já disse, acontece, por uma soma de circunstâncias, que um revolveu a terra justamente onde o outro ha­via escondido o ouro. Podemos portanto definir o acaso como um acontecimento inesperado, resultado de uma somatória de circunstâncias, que aparece no meio de ações realizadas com uma finalidade precisa; ora, o que provoca um tal conjunto de circunstâncias é justamente a ordem que procede de um encadeamento inevitável e tem como fonte a Providência, que dispõe todas as coisas em seus lugares e tempo.' (...) "

Boécio - (480 – 524 d.C.)

segunda-feira, agosto 14, 2006

A clemência do Tempo.

ManoelSeoane-a sOoL!!

No tempo há a nobre clemência da proporção
Com generosidades para lá do acreditar
(embora carne e sangue o acusem de coação
ou mente e alma o condenem por decepcionar)

Os seus caminhos não são racionais nem irracionais,
a sua sabedoria anula conflito e entendimento
- os saaras têm os seus séculos; dez mil
dos quais são mais pequenos do que a rosa para um momento

Há tempo para rir e há tempo para chorar –
para a esperança para o desespero para a paz para a saudade
- um tempo para crescer e um tempo para morrer:
uma noite para o silêncio e um dia para cantar

Mais do que tudo (como os teus mais do que olhos
me dizem) há um tempo para a eternidade.

E. E. Cummings - Tradução de Cecília Rego Pinheiro

domingo, agosto 13, 2006

O que acontece

Hiob-a sOoL!!Aconteceu
e acontece agora como dantes
e continuará sempre a acontecer
se não acontecer nada contra isso

Os inocentes
não sabem de nada
porque são demasiado inocentes
e os culpados
não sabem de nada
porque são demasiado culpados

Os pobres não dão por isso
porque são demasiado pobres
e os ricos não dão por isso
porque são demasiado ricos

Os estúpidos encolhem os ombros
porque são demasiados estúpidos
e os espertos encolhem os ombros
porque são demasiado espertos

Aos jovens isso não preocupa
porque são demasiado jovens
e aos velhos isso não preocupa
porque são demasiado velhos

Eis por que não acontece nada contra isso
e eis por que razão aconteceu
e acontece agora como dantes
e continuará sempre a acontecer

Erich Fried - Tradução de Yvette Centeno

A proeminência da mão direita

JolaBakoniuk-qa sOoL!!É a mão direita que domina.

A esquerda obedece
cegamente.

É a mão direita que fere.

A esquerda consola.

É a mão direita que disciplina,
brutaliza.

A esquerda, é o exercício
próximo e doméstico
de afagar
o que a comove, o que
recatadamente a silencia.

Esta é a terra,
os modos de nela me orientar:
as minhas mãos, a proeminência
da direita sobre a esquerda,
o que toda a vida quis negar.

Luís Quintais

sexta-feira, agosto 11, 2006

"Sofrer" a liberdade

KarelSobota-a sOoL!!"(...) Talvez ao abrir a ferida, a minha própria ferida, tenha fechado outras feridas, feridas de outras pessoas. Morre qualquer coisa, floresce qualquer coisa. Sofrer na ignorância é horrível. Sofrer deliberadamente, para compreender a natureza do sofrimento e aboli-lo para sempre, é muito diferente. O Buda, como sabemos, teve toda a vida um pensamento fixo no espírito: eliminar o sofrimento humano. Sofrer é desnecessário. Mas temos de sofrer para compreender que é assim.

Além disso, é só então que o verdadeiro significado do sofrimento humano se torna claro. No derradeiro momento desesperado - quando não podemos sofrer mais! - acontece qualquer coisa que tem a natureza de um milagre. A grande ferida aberta pela qual se escoava o sangue da vida fecha-se, o organismo desabrocha como uma rosa. Somos 'livres', finalmente (...). Não são as lágrimas que mantêm viva a árvore da vida, mas sim o conhecimento de que a liberdade é real e eterna. (...)"

Henry Miller

A dupla existência da verdade...

Darren-a sOoL!! "Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que os vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa incompreensão! Sabe acaso alguém o que é certo ou justo? Quantas coisas, que temos por belas, não são mais que o uso da época, a ficção do lugar e da hora? Quantas coisas, que temos por nossas, não são mais que aquilo de que somos perfeitos espelhos, ou invólucros transparentes, alheios no sangue à raça da sua natureza! Quanto mais medito na capacidade, que temos, de nos enganar, mais se me esvai entre os dedos lassos a areia fina das certezas desfeitas.

E todo o mundo me surge, em momentos em que a meditação se me torna um sentimento, e com isso a mente se me obnubila, como uma névoa feita de sombra, um crepúsculo dos ângulos e das arestas, uma ficção do interlúdio, uma demora da antemanhã. Tudo se me transforma em um absoluto morto de ele mesmo, numa estagnação de pormenores. E os mesmos sentidos, com que transfiro a meditação para esquecê-la, são uma espécie de sono, qualquer coisa de remoto e de sequaz, interstício, diferença, acaso das sombras e da confusão. Nesses momentos, em que compreenderia os ascetas e os retirados, se houvesse em mim poder de compreender os que se empenham em qualquer esforço com fins absolutos, ou em qualquer crença capaz de produzir um esforço, eu criaria, se pudesse, toda uma estética da desconsolação, uma rítmica íntima de balada de berço, coada pelas ternuras da noite em grandes afastamentos de outros lares.

Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de porque se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se tinham passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade."

Bernardo Soares

segunda-feira, agosto 07, 2006

Fazedor de Homens

ArturK-a sOoL!!

I
Todo homem é uma ilha...
Toda mulher é uma ilha.

É bom ser uma ilha distante
tanto quanto é bom ser um homem.

Todo homem possui uma ponte

pois é preciso sair da ilha, seguro.
A ponte de um homem é um braço estendido.

Todo homem é um mundo.

O mundo roda no sistema egocêntrico
de suas realidades,
pequenos alumbramentos,
medos e coragens.
E quando o homem encara o mundo e se depara
- homem-mundo,
mundo-homem,
volta à ilha:

Todo homem ama sua ilha.

II

O homem faz o homem.

E porque fez o homem, sem nem o homem querer
aufere direitos do homem.

Diz a ele: Cresça!
E ele fica mais alto.
Diz ao homem: Trabalhe!
E ele usa o corpo.
Diz ao homem: Viva!
E ele respira e existe.
Diz ao homem: Ame!
E ele não sabe como.
Mas diz ao homem: Procrie!
E ele faz homens.

Um dia ele morre.

Se a vida foi longa para viver -
é curta para morrer -
porque o homem não fez, não escolheu,
não pensou nada.

III

O que faz um homem diferente de outro homem
é o que ele pensa.
O que o transforma, também,
de um simples fazedor de homens,
num criador de homens.

Todo homem é uma vontade.

E se deixa de ser vontade
teme a perda de sua posse.

Todo homem é uma consciência.

Nela inclui o seu saber
e a parte maior do não saber,
e se aceita o fato, é com ela que ele se entende.

Todo homem é seu corpo.

E sabe dele em contraste com outro corpo,
tal é a sua medida.
Como também, a medida de um homem é a sua carência:
porque é assim que ele se assume,
porque é assim que ele se liberta.

Quanto mais ele precisa
mais ele é maior. E dá.
Pede. Reivindica. Exige, quanto pode.
Luta e sofre.

Todo homem quer deixar sua ilha.

Temeroso de ter que voltar um dia, entretanto,
não destrói as pontes.
Enquanto isso, a ilha fica ali, só ilha.
A ponte fica ali, só ponte.

E o homem fica ali, só homem.

Carlos Drummond de Andrade

Vitral

ArturSokolowski-a sOoL!!

"Confesso a minha impiedade: não consigo amar a Deus. Não consigo amar nada abstrato. Preciso de um rosto, de uma voz, de um olhar, de um toque de mão. Amo com os meus sentidos. Mas Deus, eu nunca vi. Não sei como ele é. Por isso não consigo amá-lo. Meu mestre Alberto Caeiro está pior do que eu, pois chega ao ponto de afirmar que nem mesmo pensar em Deus ele consegue. “Pensar em Deus é desobedecer a Deus, porque Deus quis que não o conhecêssemos, por isso se nos não mostrou.“

O amor é o melhor tônico de memória. Quando o nome da coisa amada é pronunciado, ela logo ressuscita dos mortos e aparece viva em nossa imaginação. E o corpo se enche de saudades. A saudade é o sintoma de que uma coisa amada-perdida saiu do túmulo. Mas o nome de Deus não faz nada com a minha memória. Não provoca ressurreições. Não sinto saudade de coisa alguma. O corpo não se comove.

Gosto do poema de Brecht intitulado 'Prazeres'. Sem rimas ou métrica, é uma simples enumeração de algumas das coisas que o faziam feliz... Vidros coloridos de um vitral.

“A primeira olhada pela janela de manhã.
O velho livro de novo encontrado.
Rostos entusiasmados.
Neve, a mudança das estações.
O jornal.
O cão.
Tomar banho.
Nadar.
Velha música.
Sapato confortável.
Perceber.
Nova música.
Escrever, plantar.
Viajar.
Cantar.
Ser amigo.“
(...)

Hermann Hesse escreveu um livro intitulado 'O Jogo das Contas de Vidro'. É a história de uma ordem monástica na qual os seus membros, em vez de gastarem o seu tempo com ladainhas e exercícios semelhantes, se dedicavam a um jogo que era jogado com contas de vidro coloridas. Eles sabiam que os deuses preferem a beleza às monótonas repetições sem sentido. O livro não descreve os detalhes do jogo. Mas eu sei do que se tratava. (...) Vitrais também são jogos de contas de vidro. Foi na poesia de uma poetisa minha amiga, ex-aluna, Maria Antônia de Oliveira, que pela primeira vez vi a vida como um vitral.

RufinoTamayo-a sOoL!!

"A vida se retrata no tempo formando um vitral,
de desenho sempre incompleto,
de cores variadas, brilhantes, quando passa o sol.
Pedradas ao acaso acontece de partir pedaços
ficando buracos, irreversíveis.
Os cacos se perdem por aí.
Às vezes eu encontro cacos de vida
que foram meus, que foram vivos.
Examino-os atentamente
tentando lembrar de que resto faziam parte.
Já achei caco pequeno e amarelinho
que ressuscitou de mentira, um velho amigo.
Achei outro pontudo e azul,
que trouxe em nuvens um beijo antigo.
Houve um caco vermelho
que muito me fez chorar, sem que eu lembrasse
de onde me pertencera."

Esses cacos de vitral, essas contas de vidro coloridas - isso meu corpo e minha alma amam, para todo sempre. O amor não se conforma com o veredicto do tempo - os cacos do cristal se perdendo dentro do mar, as contas de vidro colorido afundando para sempre no rio do tempo.

Quero que tudo que eu amei e perdi me seja devolvido. Todas essas coisas moram nesse imenso buraco dolorido da minha alma que se chama saudade.

Para isso eu preciso de Deus, para me curar da saudade. Dizem que o remédio está no esquecimento. Mas isso é o que menos deseja aquele que ama. Conta-se de um homem que amava apaixonadamente uma mulher que a morte levou. Desesperado, apelou para os deuses, pedindo que usassem seu poder para lhe devolver a mulher que tanto amava. Compadecidos, eles lhe disseram que devolver a sua amada eles não podiam. Nem eles tinham poder sobre a morte. Mas poderiam curar o seu sofrimento, fazendo-o esquecer-se dela. Ao que ele respondeu: “Tudo, menos isso. Pois é o meu sofrimento o único poder que a mantém viva, ao meu lado!“

Também eu não quero que os deuses me curem, pelo esquecimento. Quero antes que eles me devolvam minhas contas de vidro. E é assim que eu imagino Deus: como um fino fio de nylon, invisível, que procura minhas contas de vidro no fundo do rio e as devolve a mim, como um colar. Não por ele mesmo (sobre quem nada sei), mas por aquilo que ele faz com minhas contas....

Quero Deus como um artista que cata os cacos do meu vitral, partido por pedradas ao acaso, e os coloca de novo na janela da catedral, para que os raios de sol de novo por eles passem.

O que eu quero é um Deus que jogue o jogo das contas de vidro, sendo eu uma das contas coloridas do seu jogo..."

Rubem Alves

domingo, agosto 06, 2006

No silêncio...

JoannaN-a sOoL!!"Que é que eu penso do amor? — Em suma não penso nada. Bem que eu gostaria de saber o que é, mas estando do lado de dentro, eu o vejo em existência não em essência. O que quero conhecer - o amor - é exatamente a matéria que uso para falar - o discurso amoroso. A reflexão me é certamente permitida, mas essa reflexão é logo incluída na sucessão das imagens, ela não se torna nunca reflexividade: excluído da lógica - que supõe linguagens exteriores umas as outras - não posso pretender pensar bem. Do mesmo modo, mesmo que eu discorresse sobre o amor durante um ano, só poderia esperar pegar o conceito "pelo rabo": por flashes, fórmulas, surpresas de expressão, dispersos pelo grande escoamento do Imaginário; estou no mau lugar do amor, que é seu lugar iluminado: 'O lugar mais sombrio...' - diz um provérbio chinês - 'é sempre embaixo da lâmpada.' "

Roland Barthes

O tapete...

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio
Algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.


Alexandre O'Neil