Páginas

Música Brasileira

"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

quarta-feira, junho 28, 2006

Dizer Porquê e Para Quê

Dizer porquê e para quê do que descubro
que a vida ensina ou julgo que ela ensina?
Se o só descubro quando passou tempo,
e a gente já passou como eu também?
Se quem me leia não me entenderá?-
ou são mais velhos e já sabem,
ou mais antigos e têm outra língua
ou são mais jovens crendo que o saber
é a sua descoberta em que de passo em passo
descobrirão que a vida não ensina
senão o que mais tarde em nós descobriremos
de quanto nunca foi ou não escolhemos.

ElvioSantiago-a sOoL!!
Di-lo-ei por mim e para mim?
Porquê aos outros?
Que comum tenho com eles
além de lhes dizer que não importa
dizer o que não dizem?
se não há maneira alguma de viver de novo
o que quiséramos que a vida fora?
E se outros não de nós mas de si mesmos
já descobriram de outro modo a mesma coisa,
ou hão-de descobri-la? De experiência
Falamos e falemos. E nenhuma
serve a ninguém. Que tê-la não atendo
Ou que não tê-la tendo-a é o que se diz dizendo.

Jorge de Sena

domingo, junho 25, 2006

Deus lhe pague

ValentinaKallias-a sOoL!!Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pelo prazer de chorar e pelo "estamos aí"
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague

Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague

Chico Buarque de Holanda

sábado, junho 17, 2006

Ao longe, ao luar

PaavoSjogard
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela?

Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.

Fernando Pessoa

Perfilados de medo

LaurenRabbit-a sOoL!!
Perfilados de medo,
agradecemos o medo
que nos salva da loucura.

Decisão e coragem valem menos
a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo
combatemos irônicos fantasmas
à procura do que não fomos,
do que não seremos.

Perfilados de medo,
sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,


os loucos,
os fantasmas
somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido…

Alexandre O'Neill

segunda-feira, junho 12, 2006

Uma idolatria

PauloAlexandreCosta"A primeira idolatria foi sem dúvida o medo das coisas, mas, em ligação com ele, também medo da necessidade das coisas e, em ligação com este, medo da responsabilidade pelas coisas. Esta responsabilidade parecia tão gigantesca que ninguém se atreveu sequer a atribuí-la a um único ser sobre-humano, porque mesmo através da mediação de um ser a responsabilidade humana não teria sido suficientemente aliviada e o contato com um único ser ainda estaria demasiado manchado pela responsabilidade. Foi por isso que a cada coisa foi dada a responsabilidade por si mesma; mais ainda, a cada coisa foi também dada uma relativa responsabilidade pelos homens."

Franz Kafka

O cansaço de todas as ilusões

PauloCesar-a sOoL!!"O cansaço de todas as ilusões e de tudo que há nas ilusões - a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim.

A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência. Há inteligências inconscientes - brilhos do espírito, correntes do entendimento, mistérios e filosofias - que têm o mesmo automatismo que os reflexos corpóreos, que a gestão que o fígado e os rins fazem de suas secreções."

Bernardo Soares

domingo, junho 11, 2006

Conseqüências

"Se antes de cada ato nosso nos puséssemos a prever
todas as conseqüências dele, a pensar nelas a sério,
primeiro as imediatas,
depois as prováveis,
depois as possíveis,
depois as imagináveis,
não chegaríamos sequer a mover-nos
de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar.

JoseBrito-a sOoL!!

Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras
vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante
uniforme e equilibrada,
por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis,
em que já cá não estaremos para poder comprová-lo,
para congratular-nos ou pedir perdão,
aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade
de que tanto se fala."

José Saramago

Sentirmo-nos justificados por existirmos

"Desejamos que o ser amado nos ame para o podermos preencher com a nossa existência. Mas essa generosidade é interesseira:

Essa existência que a partir de agora sentimos ser invocada perde aos nossos olhos a sua facticidade, pretendemos motivar-nos, nós próprios e livremente, à existência, para satisfazer o desejo de uma consciência livre.

Estas queridas veias nas nossas mãos, é por bondade que elas existem. Como somos bons por termos olhos, cabelos, sobrancelhas e os prodigalizarmos incansavelmente num excesso de generosidade a esse desejo incansável de outrem.

Enquanto, antes de sermos amados nos preocupavamos com essa protuberância injustificada que era a nossa existência, que se desenvolvia em todas as direções, eis que agora essa própria existência é retomada e desejada nos seus múltiplos pormenores por uma liberdade análoga à nossa — uma liberdade que nós próprios queremos juntamente com a nossa.

É essa a essência da felicidade amorosa: sentirmo-nos justificados por existirmos. No fundo, não o estamos de forma nenhuma, apenas perdemos a nossa solidão, o ser que nos ama absorve-nos nele e nós escondemos a cabeça no seu peito, como o avestruz esconde a sua debaixo da terra. Porque a nossa solidão não existe sem que tenhamos assumido a nossa facticidade injustificável.

Nenhum amor pode justificar a nossa existência. Na realidade, é essa inautenticidade que eu censuro nas pessoas que tratam de ser amadas mas não amam.

Ora, justamente, fui muitas vezes uma dessas pessoas. O que geralmente me atraía mais numa aventura era a necessidade de me revelar "necessário" a uma consciência, à maneira de uma obra de arte. Como um maná que se tivesse produzido por si próprio para a satisfazer. Mas devo dizer que quando se ama também, seja qual for o amor que o ser amado nos testemunhe, sai-se da solidão."

Jean-Paul Sartre

Viver hipoteticamente

EdwardSteichen1906-a sOoL!!

" (...)
Desde a mais tenra juventude, naqueles tempos em que ela começa a tomar consciência de si própria e cujos vestígios mais tarde se recordam comovidamente, ficara-lhe a lembrança de toda a espécie de imaginações que lhe eram caras, entre estas a ideia de "viver hipoteticamente".

Estas duas palavras continuavam a evocar agora a coragem e a ignorância voluntária da vida, os tempos em que cada passo representa uma aventura, privada do apoio da experiência, o desejo de grandeza nas relações e esse sopro de revocabilidade que experimenta um jovem hesitante quando entra na vida.
(...)
O sentimento apaixonante de ser eleito fosse para o que fosse, eis a única coisa certa e bela que se reflete no olhar daquele que avalia pela primeira vez o mundo. Se este é senhor das suas emoções, nada encontra a que possa dizer sim sem reserva; busca a bem amada possível, mas ignora qual ela é; tem capacidade de matar, sem estar seguro de que o deve fazer.

O desejo de evoluir, próprio da sua natureza, impede-o de acreditar no fato realizado, mas tudo quanto vem a conhecer apresenta-se como se fosse já irrevogável. Pressente que esta ordem não é tão estável como parece; nenhum objeto, nenhuma pessoa, nenhum princípio é sólido, tudo está dependente de uma metamorfose invisível, mas nunca interrompida; há mais futuro no instável do que no estável e o presente não passa de uma hipótese que ainda não foi ultrapassada.

Que poderia ele fazer de melhor do que conservar a sua liberdade em relação ao mundo, como um sábio que se mantém livre em relação aos fatos que poderiam levá-lo a acreditar prematuramente em si? Por isso hesita em ser seja o que for; um caráter, um modo de vida, definido, uma profissão, não passam de representações sob as quais avulta já o esqueleto que será tudo quanto lhe resta no fim.

Busca compreender-se por outros meios; com aquele apetite de que é dotado para tudo quanto pode vir a enriquecê-lo interiormente (mesmo para além dos limites da moral e do pensamento), experimenta a impressão de ser um passo, livre de seguir em todas as direções, mas que vai sempre de um ponto de equilíbrio até ao seguinte, e sempre em frente.
(...) "
Robert Musil

sábado, junho 10, 2006

Vir à tona...

RossoAlicante-a sOoL!! "Atirávamos pedras à água
para o silêncio vir à tona.
O mundo,
que os sentidos tonificam,
surgia-nos então
todo enterrado
na nossa própria carne,
envolto por vezes
em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de
extraírem às águas
o silêncio que as unia."

Luís Miguel Nava

O mundo completo

harder_to_fall_by_iriss-a sOoL!!
Estes gestos de vento,
estas palavras duras como a noite,
estes silêncios falsos,
estes olhares de raiva a apertarem as mãos,
estas sombras de ódio a morderem os lábios,
estes corpos marcados pelas unhas!. . .

Esta ternura inventando desejos na distância,
esta lembrança a projetar caminhos,
este cansaço a retratar as horas!...

Amamo-nos. Sem lírios
sobre os braços,
sem riachos na voz,
sem miragens nos olhos.

Amamo-nos no arame farpado,
no fumo dos cigarros,
na luz dos candeeiros públicos.

O nosso amor anda pela rua
misturado ao buzinar dos carros,
ao relento e à chuva.

O nosso amor é que brilha na noite
quando as estrelas morrem no céu dos aviões.

António Rebordão Navarro

Plano

Vannic_One-a sOoL!!
"Trabalho o poema sobre uma hipótese:

O amor que se despeja no copo da vida, até meio, como se o pudéssemos beber de um trago. No fundo, como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na boca.

Pergunto onde está a transparência do vidro, a pureza do líquido inicial, a energia de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa da alma suja de restos, palavras espalhadas num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira hipótese.

O amor. Mas sem o gastar de uma vez, esperando que o tempo encha o copo até cima, para que o possa erguer à luz do teu corpo e veja, através dele, o teu rosto inteiro."

Nuno Júdice

sexta-feira, junho 09, 2006

Voz que se cala

here__in_shadow_by_BlueBlack-a sOoL!!Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.

Amo a hera que entende a voz do muro
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!...

Florbela Espanca

Quase uma natureza morta

JoseBorges-a sOoL!! "Um braço de rio que se solta da margem os ramos prolongam, na água, a nostalgia de terra. A pureza da luz não atravessa a superfície para se perder num fundo que não se adivinha (ali, onde a corrente faz saltar as espumas do centro, ninguém se aventura - mesmo que as pedras separem o curso branco das águas).

"Que é isto?", perguntas. A parábola capital a tua vida cortada ao meio, como se não houvesse uma direção única a prosseguir até ao fim. "Nem no amor?" Porém, a tarde traz consigo o frio, a visão transparente dos montes, e até o canto dos pássaros parece mais nítido, como se nenhuma outra vibração o contaminasse. Respiro contigo o conhecimento da realidade mesmo que ele passe pela descoberta de outra vida, pelo contato entre duas solidões, ou apenas por uma breve hesitação antes que os lábios se toquem, levando um e outro a saltar a outra margem - a mais abstrata a que apenas separa um corpo de outro corpo e, por cima disso, define os limites da razão e do sentimento."

Nuno Júdice

quinta-feira, junho 08, 2006

A Falsa Eternidade

"O verbo prorrogar entrou em pleno vigor, e não só se prorrogaram os mandatos como o vencimento de dívidas e dos compromissos de toda sorte. Tudo passou a existir além do tempo estabelecido. Em conseqüência não havia mais tempo.

Então suprimiram-se os relógios, as agendas e os calendários. Foi eliminado o ensino de História... Para que História? Se tudo era a mesma coisa, sem perspectiva de mudança.
BlueBlack-a sOoL!!
A duração normal da vida também foi prorrogada e, porque a morte deixasse de existir, proclamou-se que tudo entrava no regime de eternidade. Aí começou a chover, e a eternidade se mostrou encharcada e lúgubre. E o seria para sempre, mas não foi.

Um mecânico que se entediava em demasia com a eternidade aquática inventou um dispositivo para não se molhar. Causou a maior admiração e começou a receber inúmeras encomendas. A chuva foi neutralizada e, por falta de objetivo, cessou. Todas as formas de duração infinita foram cessando igualmente.

Certa manhã, tornou-se irrefutável que a vida voltara ao signo do provisório e do contingente. Eram observados outra vez prazos, limites.

Tudo refloresceu.

O filósofo concluiu que não se deve plagiar a eternidade."

Carlos Drummond de Andrade

Fragmentos de um diário (trecho)

PaavoSjogard-a sOoL!!
"Berlim, 16 de dezembro de 1847.

(...)

Terrível pensamento: cada um faz o próprio destino.

Diziam os hindus: o destino não é uma palavra, mas a conseqüência das ações cometidas em outra vida. Excusado ir tão longe. Cada vida faz o próprio destino. —Por que és fraco? Porque dez mil vezes cedeste. Assim te tornaste o joguete das circunstâncias; foste tu que fizeste a sua força, não elas que fizeram a tua fraqueza.

Aos olhos de minha consciência acabo de fazer passar de novo toda minha vida interior: infância, colégio, família, adolescência, viagens, jogos, tendências, sofrimentos, prazeres, o bom e o mau. Tentei separar a parte da natureza e da liberdade; reconhecer na criança e no moço os lineamentos do ser atual. Vi-me em contato com as coisas, com os livros, com parente, irmãs, camaradas, amigos. São de velha data os males contra os quais eu luto. — É uma longa história, que eu devo escrever um dia. — Se o antagonismo é a condição do progresso, eu nasci para fazer progressos.

Não és livre, por quê? Porque não estás de acordo contigo próprio, porque enrubesces diante de ti mesmo; porque cedes às tuas curiosidades, aos teus desejos. O que mais te custa é renunciar à tua curiosidade.

Nasceste para ser livre, para realizar corajosa e plenamente a tua idéia.

Sabes que está nisso a paz. Equilíbrio, harmonia; saber, amar, querer; idéia, beleza, amor; viver da vontade de Deus, da vida eterna; estar em paz contigo mesmo, com o destino; sabes perfeitamente, reconheceste e sentiste muitas vezes que aí estava o teu dever, a tua natureza, a tua vocação, a tua felicidade. Mas abaixo do teu dever geral não precisaste bastante a tua vocação especial, ou antes, não acreditaste seriamente no resultado ao qual havias chegado; distraíste a ti próprio. Renunciar à distração, concentrar-te em tua vontade, num pensamento; eis o que tanto te custa.

Exprimir, realizar, terminar, produzir: preocupa-te com este pensamento. É a arte. Encontra para cada coisa a sua forma. Que vá teu pensamento à sua conclusão, que a tua palavra exprima o teu pensamento; conclui as tuas frases, os teus gestos, as tuas leituras. Pensamento incompleto, meias palavras, conhecimento imperfeito, triste coisa. Isso equivale a dizer, precisar, circunscrever, esgotar, ou renunciar à curiosidade. Ordem, energia, perseverança, era o que em outro lugar eu dizia ser-me necessário.

Para a tua vida interior, o escolho é a dissipação. Perdes de vista a ti e aos teus planos, nada tens de mais interessante do que precisamento o não te interessa. Ora, ceder a esse indolência é dar uma força a mais ao tentador; é pecar contra tua liberdade, é encadear-se ante o porvir. A força física somente se adquire pelos exercícios graduados, contínuos e enérgicos. (...)

De onde vem este defeito singular de escolher sempre o caminho mais longo, dePaavoSjogard-a sOoL!! preferir o menos importante ao mais importante, de ir ao menos urgente; este zelo do acessório, este horror à linha reta?

De onde vem este prazer de, entre várias cartas para ler, começar pela menos interessante; dentre várias visitas, preferir a menos necessária; dentre vários estudos, escolher precisamente o que está mais fora do caminho natural; dentre várias compras, a menos urgente? Será apenas a tendência a comer seu pão negro, em primeiro lugar? Um refinamento de gosto? Será o desejo do completo, a pressa em aproveitar a ocasião que pode fugir, o necessário devendo sempre vir?

Belo zelo. Ou então maneira de iludir o dever, engenhosa velhacaria para adiar o que importa e o que ordinariamente é o mais fatigante; astúcia do eu indócil e preguiçoso? Ou será irresolução, falta de coragem, transferência do esforço para outra vez?

As duas últimas explicações que se fundem numa só, parecem-me a verdadeira. "Tempo ganho, tudo ganho", dizem os diplomatas. Faz o mesmo o coração, fino diplomata. Ele não recusa, apenas adia. O adiamento, se não é resolvido, é uma derrota da vontade. Só deixes para amanhã o que não é possível hoje...

(...)"

Henri-Frédéric Amiel - Tradução: Mário D. Ferreira Santos

quarta-feira, junho 07, 2006

A liberdade da auto-suficiência

SusanMcKivergan-a sOoL!!
"Quanto mais uma pessoa tem em si, tanto menos os outros podem ser alguma coisa para ela. Um certo sentimento de auto-suficiência é o que impede os indivíduos de riqueza e valor intrínseco de fazerem os sacrifícios importantes, exigidos pela vida em comum com os outros, para não falar em procurá-la às custas de uma considerável auto-abnegação. O oposto disso é o que torna os indivíduos comuns tão sociáveis e acomodáveis: para eles, é mais fácil suprotar os outros do que eles mesmo.

Acrescente-se a isso que aquilo que possui um valor real não é apreciado no mundo, e aquilo que é apreciado não tem valor. A prova e consequência disso estão no retraimento de todo o homem digno e distinto. Assim sendo, será genuína sabedoria de vida de quem possui algo de justo em si mesmo, se, em caso de necessidade, souber limitar as suas próprias carências, a fim de preservar ou ampliar a sua liberdade, isto é, se souber contentar-se com o menos possível para a sua pessoa nas relações inevitáveis com o universo humano.

Por outro lado, o que faz dos homens seres sociáveis é a sua incapacidade de suportar a solidão e, nesta, a si mesmos. Vazio interior e fastio: eis o que os impele tanto para a sociedade quanto para os lugares exóticos e as viagens. O seu espírito carece de força impulsora própria para conferir movimento a si mesmo, o que faz com que procurem intensificá-la mediante o vinho. E muitos, ao tomar esse caminho, tornam-se alcoólatras. Justamente por isso, os homens precisam sempre de estímulo exterior, e do mais forte, ou seja, dos seus iguais. Sem ele, o seu espírito decai sob o próprio peso, prostrando-se numa letargia esmagadora."

Arthur Schopenhauer

domingo, junho 04, 2006

Cogito

Eu sou como eu sou

Pronome

Pessoal intransferível
Do homem que iniciei
Na medida do impossível
Eu sou como eu sou

Agora

Sem grandes segredos dantes
Sem novos secretos dentes
Nesta hora
Eu sou como eu sou


Presente

Desferrolhado indecente
Feito um pedaço de mim
Eu sou como eu sou

Vidente

E vivo tranquilamente
Todas as horas do fim.

Torquato Neto

sábado, junho 03, 2006

Ensina ao teu filho...

FernandoVignoli-a sOoL!!

"Ensina a teu filho que o Brasil tem jeito e que ele deve crescer feliz por ser brasileiro. (...)

Ensina a teu filho que não ter talento esportivo ou rosto e corpo de modelo, e sentir-se feio diante dos padrões vigentes de beleza, não é motivo para ele perder a auto-estima. A felicidade não se compra nem é um troféu que se ganha vencendo a concorrência. Tece-se de valores e virtudes e desenha, em nossa existência, um sentido pelo qual vale a pena viver e morrer.

Ensina a teu filho que o Brasil possui dimensões continentais e as mais fertéis terras do planeta. Não se justifica, pois, tanta terra sem gente e tanta gente sem terra. Assim como a libertação dos escravos tardou, mas chegou, a reforma agrária haverá de se implantar. Tomara que regada com muito pouco sangue.

Saiba o teu filho que os sem-terra que ocupam áreas ociosas e prédios públicos são, hoje, chamados de "bandidos", como outrora a pecha caiu sobre Gandhi sentado nos trilhos das ferrovias inglesas e Luther King ocupando escolas vetadas aos negros.

Ensina a teu filho que pioneiros e profetas, de Jesus a Tiradentes, de Francisco de Assis a Nelson Mandela, são invariavelmente tratados, pela elite de seu tempo, como subversivos, malfeitores, visionários.

Ensina a teu filho que o Brasil é uma nação trabalhadora e criativa. Milhões de brasileiros levantam cedo todos os dias, comem aquém de suas necessidades e consomem a maior parcela de sua vida no trabalho, em troca de um salário que não lhes assegura sequer o acesso à casa própria. No entanto, essa gente é incapaz de furtar um lápis do escritório, um tijolo da obra, uma ferramenta da fábrica. Sente-se honrada por não descer ao ralo que nivela bandidos de colarinho branco com os pés-de-chinelo. (...)

Ensina teu filho a evitar a via preferencial dessa sociedade capitalista que nos tenta incutir que ser consumidor é mais importante que ser cidadão, incensa quem esbanja fortuna e realça mais a estética que a ética.

Saiba o teu filho que o Brasil é a terra de índios que não se curvaram ao jugo português e de Zumbi, de Angelim e frei Caneca, de madre Joana Angélica e Anita Garibaldi, dom Hélder Câmara e Chico Mendes.

Ensina a teu filho que ele não precisa concordar com a desordem estabelecida e que será feliz se se unir àqueles que lutam por transformações sociais que tornem este país livre e justo. Então, ele transmitirá a teu neto o legado de tua sabedoria.

Ensina teu filho a votar com consciência e jamais ter nojo de política, pois quem age assim é governado por quem não tem e, se a maioria tiver a mesma reação, será o fim da democracia. Que o teu voto e o dele sejam em prol da justiça social e dos direitos dos brasileiros imerecidamente tão pobres e excluídos, por razões políticas, dos dons da vida".

Frei Betto

Morte e vida severina (trecho)

O Retirante explica ao leitor quem é e a que vai:

"(...)

CandidoPortinari-Retirantes-1944-a sOoLL!!

— O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem fala agora a Vossas Senhorias?

Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida).

Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza.

Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra.

(...)"
João Cabral de Melo Neto

O outro Brasil que vem aí

KatiaFranke-a sOoL!!

"Eu ouço as vozes,
eu vejo as cores,
eu sinto os passos
de outro Brasil que vem aí:

Mais tropical, mais fraternal, mais brasileiro.

O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados terá as cores das produções e dos trabalhos.

Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças terão as cores das profissões e regiões.

As mulheres do Brasil em vez das cores boreais terão as cores variamente tropicais.

Todo brasileiro poderá dizer: É assim que eu quero o Brasil, todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor, o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco.

Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil: Lenhador, lavrador, pescador, vaqueiro, marinheiro, funileiro, carpinteiro... Contanto que seja digno do governo do Brasi, que tenha olhos para ver pelo Brasil, ouvidos para ouvir pelo Brasil, coragem de morrer pelo Brasil, ânimo de viver pelo Brasil, mãos para agir pelo Brasil, mãos de escultor que saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis...

Mãos de engenheiro que lidem com ingresias e tratores europeus e norte-americanos a serviço do Brasil, mãos sem anéis (que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar).

Mãos livres, mãos criadoras, mãos fraternais de todas as cores, mãos desiguais que trabalham por um Brasil sem Azeredos, sem Irineus, sem Maurícios de Lacerda. Sem mãos de jogadores nem de especuladores nem de mistificadores.

Mãos todas de trabalhadores, pretas, brancas, pardas, roxas, morenas, de artistas,de escritores, de operários, de lavradores, de pastores, de mães criando filhos, de pais ensinando meninos, de padres benzendo afilhados, de mestres guiando aprendizes de irmãos ajudando irmãos mais moços, de lavadeiras lavando, de pedreiros edificando de doutores curando, de cozinheiras cozinhando, de vaqueiros tirando leite de vacas chamadas comadres dos homens.

Mãos brasileiras: Brancas, morenas, pretas, pardas, roxas, tropicais, sindicais, fraternais.

Eu ouço as vozes,
eu vejo as cores,
eu sinto os passos
desse Brasil que vem aí."

Gilberto Freyre - adaptado por: a sOoL!!

Amanhecimento

AlexandreCosta-a sOoL!!
De tanta noite que dormi contigo
no sono acordado dos amores
de tudo que desembocamos em amanhecimento
a aurora acabou por virar processo.

Mesmo agora
quando nossos poentes se acumulam
quando nossos destinos se torturam
no acaso ocaso das escolhas
as ternas folhas roçam
a dura parede.

Nossa sede se esconde
atrás do tronco da árvore
e geme muda de modo a
só nós ouvirmos.

Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos
o pio de todas as asneiras
todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha
para um dia partirem em revoada.

Ainda que nos anoiteça
tem manhã nessa invernada
Violões, canções, invenções de alvorada...

Ninguém repara,
nossa noite está acostumada.

Elisa Lucinda