"Berlim, 16 de dezembro de 1847.
(...)
Terrível pensamento: cada um faz o próprio destino.
Diziam os hindus: o destino não é uma palavra, mas a conseqüência das ações cometidas em outra vida. Excusado ir tão longe. Cada vida faz o próprio destino. —Por que és fraco? Porque dez mil vezes cedeste. Assim te tornaste o joguete das circunstâncias; foste tu que fizeste a sua força, não elas que fizeram a tua fraqueza.
Aos olhos de minha consciência acabo de fazer passar de novo toda minha vida interior: infância, colégio, família, adolescência, viagens, jogos, tendências, sofrimentos, prazeres, o bom e o mau. Tentei separar a parte da natureza e da liberdade; reconhecer na criança e no moço os lineamentos do ser atual. Vi-me em contato com as coisas, com os livros, com parente, irmãs, camaradas, amigos. São de velha data os males contra os quais eu luto. — É uma longa história, que eu devo escrever um dia. — Se o antagonismo é a condição do progresso, eu nasci para fazer progressos.
Não és livre, por quê? Porque não estás de acordo contigo próprio, porque enrubesces diante de ti mesmo; porque cedes às tuas curiosidades, aos teus desejos. O que mais te custa é renunciar à tua curiosidade.
Nasceste para ser livre, para realizar corajosa e plenamente a tua idéia.
Sabes que está nisso a paz. Equilíbrio, harmonia; saber, amar, querer; idéia, beleza, amor; viver da vontade de Deus, da vida eterna; estar em paz contigo mesmo, com o destino; sabes perfeitamente, reconheceste e sentiste muitas vezes que aí estava o teu dever, a tua natureza, a tua vocação, a tua felicidade. Mas abaixo do teu dever geral não precisaste bastante a tua vocação especial, ou antes, não acreditaste seriamente no resultado ao qual havias chegado; distraíste a ti próprio. Renunciar à distração, concentrar-te em tua vontade, num pensamento; eis o que tanto te custa.
Exprimir, realizar, terminar, produzir: preocupa-te com este pensamento. É a arte. Encontra para cada coisa a sua forma. Que vá teu pensamento à sua conclusão, que a tua palavra exprima o teu pensamento; conclui as tuas frases, os teus gestos, as tuas leituras. Pensamento incompleto, meias palavras, conhecimento imperfeito, triste coisa. Isso equivale a dizer, precisar, circunscrever, esgotar, ou renunciar à curiosidade. Ordem, energia, perseverança, era o que em outro lugar eu dizia ser-me necessário.
Para a tua vida interior, o escolho é a dissipação. Perdes de vista a ti e aos teus planos, nada tens de mais interessante do que precisamento o não te interessa. Ora, ceder a esse indolência é dar uma força a mais ao tentador; é pecar contra tua liberdade, é encadear-se ante o porvir. A força física somente se adquire pelos exercícios graduados, contínuos e enérgicos. (...)
De onde vem este defeito singular de escolher sempre o caminho mais longo, de preferir o menos importante ao mais importante, de ir ao menos urgente; este zelo do acessório, este horror à linha reta?
De onde vem este prazer de, entre várias cartas para ler, começar pela menos interessante; dentre várias visitas, preferir a menos necessária; dentre vários estudos, escolher precisamente o que está mais fora do caminho natural; dentre várias compras, a menos urgente? Será apenas a tendência a comer seu pão negro, em primeiro lugar? Um refinamento de gosto? Será o desejo do completo, a pressa em aproveitar a ocasião que pode fugir, o necessário devendo sempre vir?
Belo zelo. Ou então maneira de iludir o dever, engenhosa velhacaria para adiar o que importa e o que ordinariamente é o mais fatigante; astúcia do eu indócil e preguiçoso? Ou será irresolução, falta de coragem, transferência do esforço para outra vez?
As duas últimas explicações que se fundem numa só, parecem-me a verdadeira. "Tempo ganho, tudo ganho", dizem os diplomatas. Faz o mesmo o coração, fino diplomata. Ele não recusa, apenas adia. O adiamento, se não é resolvido, é uma derrota da vontade. Só deixes para amanhã o que não é possível hoje...
(...)"
Terrível pensamento: cada um faz o próprio destino.
Diziam os hindus: o destino não é uma palavra, mas a conseqüência das ações cometidas em outra vida. Excusado ir tão longe. Cada vida faz o próprio destino. —Por que és fraco? Porque dez mil vezes cedeste. Assim te tornaste o joguete das circunstâncias; foste tu que fizeste a sua força, não elas que fizeram a tua fraqueza.
Aos olhos de minha consciência acabo de fazer passar de novo toda minha vida interior: infância, colégio, família, adolescência, viagens, jogos, tendências, sofrimentos, prazeres, o bom e o mau. Tentei separar a parte da natureza e da liberdade; reconhecer na criança e no moço os lineamentos do ser atual. Vi-me em contato com as coisas, com os livros, com parente, irmãs, camaradas, amigos. São de velha data os males contra os quais eu luto. — É uma longa história, que eu devo escrever um dia. — Se o antagonismo é a condição do progresso, eu nasci para fazer progressos.
Não és livre, por quê? Porque não estás de acordo contigo próprio, porque enrubesces diante de ti mesmo; porque cedes às tuas curiosidades, aos teus desejos. O que mais te custa é renunciar à tua curiosidade.
Nasceste para ser livre, para realizar corajosa e plenamente a tua idéia.
Sabes que está nisso a paz. Equilíbrio, harmonia; saber, amar, querer; idéia, beleza, amor; viver da vontade de Deus, da vida eterna; estar em paz contigo mesmo, com o destino; sabes perfeitamente, reconheceste e sentiste muitas vezes que aí estava o teu dever, a tua natureza, a tua vocação, a tua felicidade. Mas abaixo do teu dever geral não precisaste bastante a tua vocação especial, ou antes, não acreditaste seriamente no resultado ao qual havias chegado; distraíste a ti próprio. Renunciar à distração, concentrar-te em tua vontade, num pensamento; eis o que tanto te custa.
Exprimir, realizar, terminar, produzir: preocupa-te com este pensamento. É a arte. Encontra para cada coisa a sua forma. Que vá teu pensamento à sua conclusão, que a tua palavra exprima o teu pensamento; conclui as tuas frases, os teus gestos, as tuas leituras. Pensamento incompleto, meias palavras, conhecimento imperfeito, triste coisa. Isso equivale a dizer, precisar, circunscrever, esgotar, ou renunciar à curiosidade. Ordem, energia, perseverança, era o que em outro lugar eu dizia ser-me necessário.
Para a tua vida interior, o escolho é a dissipação. Perdes de vista a ti e aos teus planos, nada tens de mais interessante do que precisamento o não te interessa. Ora, ceder a esse indolência é dar uma força a mais ao tentador; é pecar contra tua liberdade, é encadear-se ante o porvir. A força física somente se adquire pelos exercícios graduados, contínuos e enérgicos. (...)
De onde vem este defeito singular de escolher sempre o caminho mais longo, de preferir o menos importante ao mais importante, de ir ao menos urgente; este zelo do acessório, este horror à linha reta?
De onde vem este prazer de, entre várias cartas para ler, começar pela menos interessante; dentre várias visitas, preferir a menos necessária; dentre vários estudos, escolher precisamente o que está mais fora do caminho natural; dentre várias compras, a menos urgente? Será apenas a tendência a comer seu pão negro, em primeiro lugar? Um refinamento de gosto? Será o desejo do completo, a pressa em aproveitar a ocasião que pode fugir, o necessário devendo sempre vir?
Belo zelo. Ou então maneira de iludir o dever, engenhosa velhacaria para adiar o que importa e o que ordinariamente é o mais fatigante; astúcia do eu indócil e preguiçoso? Ou será irresolução, falta de coragem, transferência do esforço para outra vez?
As duas últimas explicações que se fundem numa só, parecem-me a verdadeira. "Tempo ganho, tudo ganho", dizem os diplomatas. Faz o mesmo o coração, fino diplomata. Ele não recusa, apenas adia. O adiamento, se não é resolvido, é uma derrota da vontade. Só deixes para amanhã o que não é possível hoje...
(...)"
Henri-Frédéric Amiel - Tradução: Mário D. Ferreira Santos
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