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Música Brasileira

"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

sábado, abril 29, 2006

O vôo dos corvos

Haverá pouca coisa a esquecer:

O vôo dos corvos,

Uma rua molhada,

O modo do vento soprar,

O nascer da lua, o pôr do Sol,

Três palavras que o mundo sabe,

Pouca coisa a esquecer.



Será bem fácil de esquecer.

A chuva pinga

Na argila rasa

E lava lábios,

Olhos e cérebro.

A chuva pinga na argila rasa.



A chuva mansa lavará tudo:

O vôo dos corvos,

O modo do vento soprar,

O nascer da lua, o pôr do Sol.

Lavará tudo, até chegar

Aos duros ossos desnudados,

E os ossos, os ossos esquecem.

Archibald McLeish - tradução: Manoel Bandeira

Legenda dos dias

BernhardAlbrecht- a sOoL!!
O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e,
à saída,
Leva uma crença vaga,
indefinida,
De achar o Ideal
nalguma encruzilhada...

As horas morrem
sobre as horas...
Nada!
E ao poente,
o Homem,
com a sombra
recolhida
Volta, pensando:
"Se o Ideal da Vida
Não vejo hoje, virá na outra jornada..."


Ontem,
hoje,
amanhã,
depois, e, assim,
Mais ele avança, mais distante
é o fim,
Mais se afasta o horizonte
pela esfera;

E a Vida passa...
efêmera
e vazia:

Um adiantamento eterno
que se espera,
Numa eterna esperança
que se adia...

Raul Leoni

A rã e o escorpião

CarolGula-a sOoL!!
"Parado ao sol, o escorpião olhava ao redor da montanha onde morava.

"Positivamente, tenho de me mudar daqui" - pensou.

Esperou a madrugada chegar, lançou-se por caminhos empoeirados até atingir a floresta. Escalou rochedos, cruzou bosques e, finalmente, chegou às margens do rio largo e caudaloso.

"Que imensidão de águas! A outra margem parece tão convidativa... Se eu soubesse nadar..."

Subiu longo trecho da margem, desceu novamente, olhou para trás. Aquele rio certamente não teria medo de escorpião. A travessia era impossível.

"Não vai dar. Tenho de reconsiderar minha decisão" - lamentou.

Estava quase desistindo quando viu a rã sobre a relva, bem próxima à correnteza. Os olhos do escorpião brilharam:

"Ora, ora... Acho que encontrei a solução!" - pensou rápido.

- Olá, rãzinha! Me diga uma coisa: você é capaz de atravessar este rio?

- Ih, já fiz essa travessia muitas vezes até a outra margem. Mas por que você pergunta? - disse a rã, desconfiada.

- Ah, deve ser tão agradável do outro lado - disse - pena eu não saber nadar.

A rã já estava com os olhos arregalados: "será que ele vai me pedir...?"

- Se eu pedisse um favor, você me faria? - disse o escorpião mansamente.

- Que favor? - murmurou a rã.

- Bem - o tom da voz era mais brando ainda - bem, você me carregaria nas costas até a outra margem?

A rã hesitou:

- Como é que eu vou ter certeza de que você não vai me matar?

- Ora, não tenha medo. Evidentemente, se eu matar você, também morrerei - argumentou o escorpião.

- Mas... e se quando estivermos saindo daqui você me matar e pular de volta para a margem?

- Nesse caso eu não cruzaria o rio nem atingiria meu destino - replicou o escorpião.

- E como vou saber se você não vai me matar quando atingirmos a outra margem? - perguntou a rã.

- Ora, ora... quando chegarmos ao outro lado eu estarei tão agradecido pela sua ajuda que não vou pagar essa gentileza com a morte.

Os argumentos do escorpião eram muito lógicos. A rã ponderou, ponderou e, afinal, convenceu-se. O escorpião acomodou-se nas costas macias da agora companheira de viagem e começaram a travessia. A rã nadava suavemente e o escorpião quase chegou a cochilar. Perdeu-se em pensamentos e planos futuros, olhando a extensão enorme do rio.

De repente se deu conta de que estava dependendo de alguém, de que ficaria devendo um favor para a rãzinha. Reagiu, ergueu o ferrão.

"Antes a morte que tal sorte" - pensou.

A rã sentiu uma violenta dor nas costas e, com o rabo do olho, viu o escorpião recolher o ferrão. Um torpor cada vez mais acentuado começava a invadir-Ihe o corpo.

- Seu tolo - gritou a rã - agora nós dois vamos morrer! Por que fez isso?

O escorpião deu uma risadinha sarcástica e sacudiu o corpo.

- Desculpe, mas eu não pude evitar. Essa é a minha natureza."

Esopo

O andarilho

MarianneLeCarrour-a sOoL!!Um andarilho vai pela noite

A passos largos;

Só curvo vale e longo desdém

São seus encargos.

A noite é linda -

Mas ele avança e não se detém.

Aonde vai seu caminho ainda?

Nem sabe bem.

Um passarinho canta na noite:

"Ai, minha ave, que me fizeste!

Que meu sentido e pé retiveste,

E escorres mágoa de coração

Tão docemente no meu ouvido,

Que ainda paro e presto atenção?

- Por que me lanças teu chamariz?"-


MarianneLeCarrour-a sOoL!!

A boa ave se cala e diz:

"Não, andarilho! Não é a ti, não,

Que chamo aqui

Com a canção -

Chamo uma fêmea de seu desdém -

Que importa isso, a ti também?

Sozinho, a noite não está linda

Que importa a ti?

Deves ainda

Seguir, andar,

E nunca, nunca, nunca parar!

Ficas ainda?

O que te fez minha flauta mansa,

Homem da andança?"

A boa ave se cala e pensa:

"O que lhe fez minha flauta mansa,

Que fica ainda?

O pobre, pobre homem da andança!"


Friedrich Wilhelm Nietzsche

quinta-feira, abril 27, 2006

Coisas secretas

"Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir - apenas sons para as caricaturar. E como essas idéias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os isolados que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam."

Mário de Sá Carneiro

Pega o azul

Era uma vez, vejam vocês, um passarinho feio
Que não sabia o que era, nem de onde veio

Então vivia, vivia a sonhar em ser o que não era
Voando, voando com as asas, asas da quimera

Sonhava ser uma gaivota porque ela é linda e todo mundo nota
E naquela de pretensão queria ser um gavião

E quando estava feliz, feliz, ser a misteriosa perdiz
E vejam, então, que vergonha quando quis ser a sagrada cegonha

E com a vontade esparsa sonhava ser uma linda garça
E num instante de desengano queria apenas ser um tucano

E foi aquele, aquele ti-ti-ti quando quis ser um colibri
Por isso lhe pisaram o calo e aí então cantou de galo

Sonhava com a casa de barro, a do joão-de-barro, e ficava triste
Tão triste assim como tu, querendo ser o sinistro urubu

E quando queria causar estorvo então imitava o sombrio corvo
E até hoje ainda se discute se é mesmo verdade que virou abutre

E quando já estava querendo aquela paz dos sabiás
Cansado de viver na sombra, voar, revoar feito a linda pomba

E ao sentir a falta de um grande carinho então cantava feito um canarinho
E assim o passarinho feio quis ser até pombo-correio

Aí então Deus chegou e disse:

Pegue as mágoas

Pegue as mágoas e apague-as, tenha o orgulho das águias

Deus disse ainda:

é tudo azul...

E o passarinho feio

Virou o cavalo voador, esse tal de Pégaso

JoseViegas-a sOoL!!

Pégaso,

Pega o Azul.

Moraes Moreira (A lenda de Pégaso)

quarta-feira, abril 26, 2006

Catarse

Fernanda PittelkowMe coloco pra fora
Me exponho
Me lamento toda hora

Me construo Desatino
Me destruo
Desabafo

Me escorro pelos olhos
Saio de mim para esquecer a tristeza
Lavo o rosto, o corpo,
e a alma!

Choro!

Fernanda Pittelkow

segunda-feira, abril 24, 2006

A partida

AwadhAlhamzany-a sOoL!!"Ordenei que tirassem meu cavalo da estrebaria. O criado não me entendeu. Fui pessoalmente à estrebaria, selei o cavalo e montei-o. Ouvi soar à distância uma trompa, perguntei-lhe o que aquilo significava. Ele não sabia de nada e não havia escutado nada. Perto do portão ele me deteve e perguntou:

– Para onde cavalga senhor?

– Não sei direito – eu disse –, só sei que é para fora daqui, fora daqui. Fora daqui sem parar; só assim posso alcançar meu objetivo.

– Conhece então o seu objetivo? – perguntou ele.

– Sim – respondi – Eu já disse: “fora-daqui”, é esse o meu objetivo.

– O senhor não leva provisões – disse ele.

– Não preciso de nenhuma – disse eu. – A viagem é tão longa que tenho de morrer de fome se não receber nada no caminho. Nenhuma provisão pode me salvar. Por sorte esta viagem é realmente imensa."

Franz Kafka

domingo, abril 23, 2006

Tu me ergues

Quando eu estou pra baixo e, oh minha alma, tão cansada;
Quando os problemas vêm e meu coração queimando está;
Então eu fico quieto e espero aqui em silêncio,
Até você vir e sentar, por um instante, comigo.

Tu me ergues, então eu posso permanecer nas montanhas;
Tu me ergues, para caminhar em mares tempestuosos;
Eu sou forte, quando estou em seus ombros;
Tu me ergues: para além do que eu posso ser.

Tu me ergues, então eu posso permanecer nas montanhas;
Tu me ergues, para caminhar em mares tempestuosos;
Eu sou forte, quando estou em seus ombros;
Tu me ergues: para além do que eu posso ser.

Não há vida, não há vida sem esta ânsia;
Cada coração sem tranqüilidade bate tão imperfeitamente;
Mas quando você vem e eu estou cheio de admiração
Às vezes, eu acho que serei eternamente vislumbrado.

Tu me ergues, então eu posso permanecer nas montanhas;
Tu me ergues, para caminhar em mares tempestuosos;
Eu sou forte, quando estou em seus ombros;
Tu me ergues: para além do que eu posso ser.

Tu me ergues, então eu posso permanecer nas montanhas;
Tu me ergues, para caminhar em mares tempestuosos;
Eu sou forte, quando estou em seus ombros;
Tu me ergues: para além do que eu posso ser.

Tradução da música: You Raise me up / Josh Croban

Palavra do Grande Inquisidor...



GwenaelBollinger-a sOoL!!
"De tudo o que Dostoievski escreveu em Os Irmãos Karamazovi o que mais me impressionou foi o incidente do “Grande Inquisidor” (...) Jesus havia voltado à terra e andava incógnito entre as pessoas. Todos o reconheciam e sentiam o seu poder mas ninguém se atrevia a pronunciar o seu nome. Não era necessário. De longe o Grande Inquisidor o observa no meio da multidão e ordena que ele seja preso e trazido à sua presença. Então, diante do prisioneiro silencioso, ele profere a sua acusação.

“Não há nada mais sedutor aos olhos dos homens do que a liberdade de consciência, mas também não há nada mais terrível. Em lugar de pacificar a consciência humana de uma vez por todas mediante sólidos princípios, Tu lhe ofereceste o que há de mais estranho, de mais enigmático, de mais indeterminado, tudo o que ultrapassava as forças humanas: a liberdade. Agiste, pois, como se não amasses os homens... Em vez de Te apoderares da liberdade humana, Tu a multiplicaste, e assim fazendo, envenenaste com tormentos a vida do homem, para toda a eternidade...”

O Grande Inquisidor estava certo. Ele conhecia o coração dos homens. Os homens dizem amar a liberdade mas, de posse dela, são tomados por um grande medo e fogem para abrigos seguros. A liberdade dá medo. Os homens são pássaros que amam o vôo mas têm medo dos abismos. Por isso abandonam o vôo e se trancam em gaiolas.

Não me recordo o nome do autor. Mas não importa. Textos valem por eles mesmos e não pelos nomes daqueles que os escreveram. Eu o reconto com as minhas palavras.

GiladBenari-a sOoL!!

“Era um bando de patos selvagens que voavam nas alturas. Lá em cima era o vento, o frio, os horizontes sem fim, as madrugadas e os poentes coloridos. Tudo tão bonito! Mas era uma beleza que doía. O cansaço do bater das asas, o não ter casa fixa, o estar sempre voando e as espingardas dos caçadores... Foi então que um dos patos selvagens, olhando lá das alturas para a terra aqui em baixo viu um bando de patos domésticos. Eram muitos. Estavam tranqüilamente deitados à sombra de uma árvore. Não precisavam voar. Não havia caçadores. Não precisavam buscar o que comer: o seu dono lhes dava milho diariamente. E o pato selvagem invejou os patos domésticos e resolveu juntar-se a eles. Disse adeus aos seus companheiros, baixou seu vôo e passou a viver a vida mansa que pedira a Deus. E assim viveu por muitos anos. Até que... Até que, num ano como os outros chegou de novo o tempo da migração dos patos. Eles passavam nas alturas, no fundo do azul do céu, grasnando, um grupo após o outro. Aquelas visões dos patos em vôo, as memórias de alturas, aqueles grasnados de outros tempos começaram a mexer com algum lugar esquecido dentro do pato domesticado, o lugar chamado saudade. Uma nostalgia pela vida selvagem, pelas belezas que só se vêem nas alturas, pelo fascínio do perigo... Até que não foi mais possível agüentar a saudade. Resolveu voltar a ser o pato selvagem que fora. Abriu suas asas, bateu-as para voar, como outrora... mas não voou. Caiu. Esborrachou-se no chão. Estava gordo demais. E assim passou o resto de sua vida: em segurança, protegido pelas cercas e triste de não poder voar...”

(...)

LarsRaun-a sOoL!!

Somos assim. Sonhamos o vôo mas tememos as alturas. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o vôo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o vôo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.

É um engano pensar que os homens seriam livres se pudessem, que eles não são livres porque um estranho os engaiolou, que eles voariam se as portas da gaiola estivessem abertas. A verdade é o oposto. Não há carcereiros. Os homens preferem as gaiolas ao vôo. São eles mesmos que constroem as gaiolas em que se aprisionam “Prisioneiro, dize-me, quem foi que fez essa inquebrável corrente que te prende?”, perguntava Tagore. “Fui eu”, disse o prisioneiro, “fui eu que forjei com cuidado, esta corrente...”

Rubem Alves

sexta-feira, abril 21, 2006

Se as minhas mãos pudessem desfolhar

Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então alguma vez?
Que culpa tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se meus dedos pudessem desfolhar a lua!!

Garcia Lorca

Encontro

Que vens contar-me se não sei ouvir senão o silêncio?

Estou parado no mundo.

Só sei escutar de longe antigamente ou lá para o futuro.

É bem certo que existo: chegou-me a vez de escutar.

Que queres que te diga se não sei nada e desaprendo?

A minha paz é ignorar.

Aprendo a não saber: que a ciência aprenda comigo já que não soube ensinar.

O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas e não desce à cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma antes de desaparecer.

Para que queres que te apareça se me agrada não ter horas a toda a hora?

A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.

Para que me lastimas se este é o meu auge?!

Eu tive a dita de me terem roubado tudo menos a minha torre de marfim.

Jamais os invasores levaram consigo as nossas torres de marfim.

Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.

Só não sei que faça da porta da torre que dá para donde vim.

Almada Negreiros

quinta-feira, abril 20, 2006

Sem perguntas...

AjaLeigh-a sOoL!!
“Deixa
que eu
te
ame
em silêncio

Não pergunte,
não se explique,

deixe que nossas línguas se toquem,
e as bocas e a pele
falem seus líquidos desejos.

Deixa
que eu
te
ame
sem palavras

a não ser aquelas
que na lembrança
ficarão pulsando para sempre
como se
o amor
e
a vida

fosse um discurso
de
impronunciáveis emoções”

Affonso Romano de Sant´Anna

Pássaro

Cada pássaro
Sabe a rota
Do retorno

Cada pássaro Sabe a rota De si

Cada pássaro
Na rota
Sabe-se Pássaro.

Damário da Cruz

quarta-feira, abril 19, 2006

As nuvens são sombrias

ihsaad-a sOoL!!


As nuvens são sombrias
Mas, nos lados do sul,
Um bocado do céu
É tristemente azul.

Assim, no pensamento,
Sem haver solução,
Há um bocado que lembra
Que existe o coração.

E esse bocado é que é
A verdade que está
A ser beleza eterna
Para além do que há.

Fernando Pessoa

segunda-feira, abril 17, 2006

Urgentemente

GiladBenari-a sOoL!!É urgente
o
amor.
É urgente um barco
no mar.

É urgente destruir
certas palavras,
ódio,
solidão
e
crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar
alegria,
multiplicar
os beijos,
as searas,
é urgente descobrir
rosas
e
rios
e
manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros
e a luz impura,
até doer.
É urgente o amor,
é urgente
permanecer.


Eugénio de Andrade

domingo, abril 16, 2006

Noções

SusanMcKivergan-a sOoL!! Entre mim e mim,
há vastidões bastante para a navegação dos meus desejos afligidos.
Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.
Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...

Cecília Meireles

sábado, abril 15, 2006

Devo dizê-lo de novo?

Sonja-a sOoL!! "Tu dirás que repito algo que disse antes.
Di-lo-ei de novo.
Devo dizê-lo de novo?
Para chegares aí,
Para chegares ondes estás, para saíres de onde não estás,
Deves seguir por um caminho onde não há extase.
Para chegares ao que não sabes
Deves seguir por um caminho que é o da ignorância.
Para possuíres o que não possuis
Deves seguir pelo caminho da privação.
Para chegares ao que não és
deves seguir pelo caminho onde não estás.
E o que não sabes é a única coisa que sabes
E o que possuis é o que não possuis
E onde estás é onde não estás."

T.S. Eliot

segunda-feira, abril 10, 2006

Cisão

"Gostava de saber
até que ponto a idéia de céu e a de unidade
andam ligadas.

Só assim poderia avaliar
que peso
tem o fato
de eu sentir
que o céu
se encontra
dividido

MarcosGebin-a sOoL!!
e uma das partes se alojou
transversalmente
no meu corpo.

Tal é às vezes o seu peso,
que me vejo
constrangido
a andar
dobrado."

Luís Miguel Nava

A Sentença

A.T-a sOoL!!

"Num velho livro topei com uma palavra escrita,
Que como um choque me marcou e ilumina toda a minha vida:

E quando me entrego ao prazer embotante,
E à essência prefiro a aparência, a mentira e o falso semblante,

Quando, de ânimo leve, a mim mesmo me engano com pequenos nadas,
Como se fosse clara a escuridão,
Como se a vida não tivesse mil portas brutalmente fechadas,

E agarro coisas cujo sentido profundo não vivi,
Quando, com mãos aveludadas, o sonho bem-vindo me acaricia

E de trabalhos e dias me alivia,
Alienado do mundo, estranho à minha própria consciência,
Então ergue-se em mim essa palavra:

Homem, torna à tua essência! "

Ernst Stadler

domingo, abril 09, 2006

Percurso

LuisPinto-a sOoL!!

"Todos aqueles acasos da nossa vida, em que fomos, ou ridículos, ou reles, ou atrasados, consideremo-los, à luz da nossa serenidade íntima, como incômodos de viagem. Neste mundo, viajantes, volentes ou involentes, entre nada e nada ou entre tudo e tudo, somos somente passageiros, que não devem dar demasiado vulto aos precalços do percurso, às contundências da trajetória. Consolo-me com isto, não sei se porque me consolo, se porque há nisto que me console. Mas a consolação fictícia torna-se-me verdade se não penso nela.

Depois, há tantas consolações! Há o céu azul alto, limpo e sereno, onde bóiam sempre nuvens imperfeitas. Há a brisa leve, que agita os ramos densos das árvores, se é no campo; que faz oscilar as roupas estendidas, nos quartos andares, ou quintos, se é na cidade. Há o calor ou o fresco, se os há, e sempre, no fundo, uma memória, com sua saudade, com sua esperança, e um sorriso de magia à janela do mundo, o que desejamos batendo à porta do que somos, como pedintes que são o Cristo."

Bernardo Soares

Das vantagens de ser bobo

DanielCamacho

"O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas.

Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo, estou pensando”. Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo parece nunca ter tido ver. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski. Há desvantagem, obviamente.

Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco.

Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu. Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama! Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz. O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil.

Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem. Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil).

Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar o excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo."

Clarice Lispector

Há dias em que...

Ugly-a sOoL!!
"Há dias em que o olhar se queda no amor.
Por entre as mãos vai-se escapando a vida.
Nunca a morte.
Ao longe, o som desse violino,
aportado em sentimentos e sentidos.
Porque a vida é sempre um poema.

Há memórias tristes de tão felizes que foram.
Ou que poderiam ter sido.
Por entre os ecos da brandura do teu sorriso,
perdido nas sombras da luz ignóbil que o destino traçou.

porquê?

E é nos dias em que o olhar se queda no amor
que o som desse violino tem o seu sentido.

Saudade.

A criança que fui não cresceu.
A criança que fui continua a chorar.
Desde esse dia.

Até esse dia.

Parece que o violino deixou de tocar.
E as palavras resvalam
por entre as lágrimas que pousam nos lábios.
Porque as lágrimas são a tua música.

Nos dias em que o olhar se queda no amor."

Sílabas Abensonhadas... in: http://silabas.blogger.com.br/

sábado, abril 08, 2006

Diálogo

AugustoPeixoto-a sOoL!!
Minhas palavras são a metade de um diálogo obscuro
continuando através de séculos impossíveis.

Agora compreendo o sentido e a ressonância
que também trazes de tão longe em tua voz.


Nossas perguntas e resposta se reconhecem
como os olhos dentro dos espelhos.
Olhos que choraram.

Conversamos dos dois extremos da noite,
como de praias opostas.
Mas com uma voz que não se importa...
E um mar de estrelas se balança
entre o meu pensamento e o teu.

Mas um mar sem viagens.

Cecília Meireles

Sê tu a palavra

Sê tu a palavra, branca rosa brava.
o
desejo
é
matinal.

Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.
Morre de ter ousado na água amar o fogo.
Beber-te
a sede
e partir

- eu sou de tão longe.
Da
chama
à espada
o caminho
é
solitário.
Que me quereis, se me não dais o que é tão meu?

Eugénio de Andrade

sexta-feira, abril 07, 2006

O poço

AugustoPeixoto-a sOoL!!Cais, às vezes, afundas
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profunduras da tua existência.

Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?

Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.

Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.

Radiosa me sorri
se minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.

Dá-me amor, me sorri
e me ajuda a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.

Pablo Neruda