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Música Brasileira

"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

domingo, junho 24, 2007

Misericórida e Justiça...

Hanging_by_neon_lilith-a sOoL!!"'O acusado que vacilar nas respostas, afirmando ora uma ora outra coisa, vai para a tortura. O suspeito que tiver pelo menos uma testemunha contra si vai para a tortura. O acusado contra quem pesarem vários indícios veementes, mesmo se não houver testemunhas de acusação, vai para a tortura. Com muito mais razão vai para a tortura quem, além dos indícios, tiver contra si o depoimento de uma testemunha.'

Essas regras foram tiradas quase literalmente do "Manual dos Inquisidores", escrito pelo frade dominicano Nicolau Eymerich em 1376, revisto e ampliado pelo também dominicano Francisco de la Peña em 1578. Eymerich foi ele próprio inquisidor. De La Peña atualizou as instruções, compatibilizando as inquisições romana e espanhola. A tortura de acusados e suspeitos foi autorizada em 1252 pelo papa Inocêncio 4º. A partir de 1542 a Congregação do Santo Ofício, por meio de seus tribunais, centralizou o controle de todos os assuntos e procedimentos relativos à Inquisição. O lema do Santo Ofício era: "Misericórdia e Justiça".

A finalidade da tortura, como esclarece de La Peña, é menos provar um fato do que forçar o acusado a confessar a culpa. A confissão é o objetivo central da atividade inquisitória. Para chegar a ela, o inquisidor pode usar de truques, malícia, fraudes e, em último caso, tortura. O inquisidor dirá ao acusado ou suspeito que já sabe de tudo, mesmo que não saiba, fingirá ler documentos incriminadores, prometerá perdão (mesmo que não tenha autoridade para dá-lo), colocará junto ao acusado antigos cúmplices para levá-los à confissão pela fraude e, finalmente, se nada disso funcionar, avisará que terá que usar a tortura. Da tortura em processos por crime de heresia não escapava ninguém. Crianças de menos de 14 anos não eram torturadas: "Elas serão aterrorizadas e chicoteadas, mas não torturadas".

O manual não descreve os métodos de tortura porque os julga de conhecimento geral. Os principais eram o pau, as cordas, o cavalete, a polé (roda eriçada de farpas) e as brasas. Critica os inquisidores que inventam novas torturas e os que exageram em sua aplicação a ponto de matar as vítimas ou de fraturar seus membros e deixá-las doentes para sempre. O acusado deve sair inteiro da sessão de tortura, seja para ser libertado, seja para ser executado.

A Inquisição foi autorizada a funcionar em Portugal em 1536 e só foi extinta em 1821. No Brasil, governadores, ouvidores-gerais e bispos exerciam no início a função inquisitorial. Além disso, havia as visitações oficiais do tribunal português do Santo Ofício. A primeira chegou em 1591 e atuou na Bahia e em Pernambuco até 1595.

Outra visitação ocorreu em 1618, também na Bahia. A mais ilustre vítima da Inquisição no Brasil foi Antônio José da Silva, o Judeu, levado a Portugal e queimado em auto-de-fé. Juntando-se Portugal e colônias, calcula-se que cerca de 30 mil pessoas tenham sido julgadas, metade das quais foram para a fogueira.

A investigação e punição de crimes civis, não religiosos, eram reguladas pelas disposições do Livro 5º das "Ordenações Filipinas", publicadas pela primeira vez em 1603. Segundo o título 133 do Livro 5º, denominado "Dos Tormentos", se o julgador achasse que havia motivos suficientes para crer na culpa do acusado, "mandá-lo-á meter a tormento". O tormento seria repetido se o acusado confessasse sob tortura mas depois se negasse a ratificar o confessado. As penas contidas no Livro 5º incluíam a morte natural cruelmente para o crime de lesa-majestade (lembremo-nos de Tiradentes), a morte por fogo até virar pó, para sodomitas e incestuosos, o corte das mãos seguido de morte para assassinos, a queima com tenazes ardentes, seguida do corte das mãos e enforcamento para escravos que matassem seus senhores, os açoites etc. Entre as penas menores, uma das mais usadas era o degredo para a África e o Brasil. O Livro 5º vigorou no Brasil até a publicação do Código Criminal em 1830, muito da parte civil das "Ordenações" até a publicação do Código Civil em 1916.

The_One_I_Want_3_by_KarlLEmmett-a sOoL!!No mundo das relações privadas, sobretudo entre escravos e senhores, a imaginação de instrumentos e modalidades de tortura não conheceu limites: correntes, troncos, máscaras, palmatória, chicote, ferro de marcar a quente, castrações, amputações de membros, assamento em fornalhas, corpo untado de mel no formigueiro. A Marinha recorria à chibata para lanhar o lombo dos marinheiros até que a revolta de João Cândido e seus companheiros pôs fim à prática em 1910. O Exército usava a espada para dar surras nas praças. Como observou mais tarde um marinheiro contemporâneo de João Cândido, foram as chicotadas e lambadas que o fizeram entrar "na compreensão do que é ser cidadão brasileiro".

Não é preciso listar as inovações tecnológicas na tortura introduzidas pelas Forças Armadas durante a ditadura. Como diziam Eymerich e De la Peña, elas são de conhecimento geral. Também é de conhecimento geral a prática de tortura nas delegacias de polícia, colocada recentemente em evidência por reportagens sobre episódios policiais em vários Estados da federação. Quem fizesse uma história das delegacias de polícia desde 1841, quando a reforma do Código de Processo Criminal passou para os delegados as atribuições dos juízes de paz, mostraria facilmente que pouco mudou até hoje no que se refere aos métodos de extrair confissão de presos.

Esses métodos são exemplificados pela entrevista de um investigador da polícia civil do Pará publicada na Folha do último dia 18 de outubro (1999). Dizendo-se dos menos violentos entre os companheiros, o investigador informa que a palmatória e os choques elétricos são rotina nas delegacias e necessários para lidar com bandido que não quer confessar: "Trinta bolos de um lado, 20 do outro, se nunca apanhou da mãe, entrega tudo". "Palmatória é negócio normal", resume. Os métodos e a mentalidade do investigador de 1999 não diferiam daqueles usados pelos inquisidores desde o século 14. Tudo muito antigo, tudo muito nosso, tudo parte de nossa herança. A reação indignada à tortura só se verificou depois que as Forças Armadas a estenderam à classe média durante a ditadura. Preto e pobre sempre apanharam.

Novidade mesmo neste fim de século só o esquartejamento com moto-serra."

José Murilo de Carvalho - in: Folha online - Brasil 500 anos - 14/11/1999.

Procrusto, o esticador

Tangled_angels__II__by_temporary_peace.jpg-a sOoL!!
"Na localidade de Coridalos viviam muitos gigantes e homens crescidos normais. Disso decorria que os homens maiores, os gigantes, subjugavam os homens menores. Como Coridalos ficava na região da Ática, soprou até lá um hálito de razão vindo de Atenas, inspirando o gigante Polípemo, que era particularmente grande, a pensar. Durante várias semanas ele andou pensativo pela paisagem, refletindo sobre a desigualdade dos homens. Depois ele se nomeou Procrusto, o esticador, e construiu duas camas, uma para os gigantes e outra para os não-gigantes. Na cama para os não-gigantes ele colocava os gigantes e lhe cortava as pernas, de modo que eles coubessem na cama dos não-gigantes. Os não-gigantes, ele colocava na cama dos gigantes e os esticava, até que estes se adequassem à cama.

Palas Atena, de cujo hálito soprou o ar da razão até Coridalos, sentiu-se responsável e dirigiu-se a Procrusto. Ela lhe perguntou o que fazia.

"Estou agindo de acordo com a tua razão, deusa", respondeu o gigante, "cujo hálito colocou em movimento o meu pensar. Eu comecei a refletir sobre a desigualdade dos homens. Ela é injusta. Eu me dei conta pouco a pouco de que a justiça exige que todos os homens sejam iguais. Isto é razoável. Há em Coridalos giagantes e não-giagantes. sendo que os primeiros subjugam os segundos. Os homens são aqui desiguais de dois modos: em seu ser e em seu fazer. Isto não é razoável. Ora, se eu tornasse apenas os gigantes em não-gigantes, cortando-lhes as pernas, eu teria produzido com isso, todavia, uma nova injustiça: não-gigantes aleijados e não-gigantes, sendo que nesse caso estes últimos submeteriam os gigantes que se tornaram aleijados. Também irrazoável. Mas se eu agisse contra os não-gigantes, se eu os esticasse ao tamanho dos giagantes aleijados, eu teria produzido uma nova injustiça: tal como os gigantes aleijados, eles estão tão entregues aos gigantes quanto os não-gigantes. Outra vez irrazoável. Assim sendo, a meu ver, só há uma possibilidade de estabelecer a igualdade de todos os homens: os gigantes têm o direito de ser não-gigantes, e os não-gigantes de ser gigantes. Eu estou agindo de acordo com isso. Eu corto as pernas dos gigantes, eles se tornam tão pequenos quanto os não-gigantes. Quanto aos não-gigantes, eu os estico até ficarem do tamanho dos gigantes. Tal operação torna ambos iguais, pois através dela ambos se tornam aleijados. E se eles morrem em conseqüência da operação, eles também são iguais entre si, pois a morte torna todos iguais. Isto não é razoável?"

Balançando a cabeça negativamente, Palas Atena retornou a Atenas. A argumentação de Procrusto a fez perder as palavras. Foi a primeira vez que ela, como deusa, ouviu um discurso ideológico, e ela não encontrou nenhuma réplica. Procrusto, em virtude do siêncio da deusa, convenceu-se da correção de suas deduções, e voltou a torturar. Àqueles que torturava, ele sempre esclarecia que o fazia em nome da justiça: ora, um gigante tem o direito de ser um não-gigante e vice-versa.

A localidade de Coridalos tornou-se um inferno, repleta dos gritos dos martirizados, que podiam ser ouvidos em toda a Grécia. Os deuses, embaraçados, tapavam os ouvidos com as mãos. Eles também não encontravam nenhuma réplica à argumentação de Procrusto. As pragas, em especial, eram horríveis de se ouvir. Por isso, eles desligavam o som dos televisores - como deuses eles estavam tecnicamente bem à frente dos homens - para não mais ouvir as preces e os pedidos de socorro, bem como a gritaria e as maldições de Coridalos, razão pela qual eles nada mais ouviam do resto da terra. Todavia, isso fez com que eles não mais interviessem na história.

E assim, então, gigantes e não-gigantes amaldiçoavam Procrusto, enquanto ele os torturava, e os aleijados gigantes e não-gigantes o amaldiçoavam também. Saíam maldições até mesmo do túmulo daqueles que não haviam passado pelo procedimento bárbaro. Mas visto que Procrusto não compreendia porque ele estava sendo amaldiçoado - pois ele se sentia um benfeitor e era em geral um gigante muito sensível -, ele imaginou que o problema estava em seu método, adquirindo especialmente para as suas camas bons colchões. Desse modo, enquanto os coridalianos gritavam incessantemente e amaldiçoavam, ele tentava acalmar os torturados de um outro modo, já que eles não haviam sido iluminados pela razão divina como ele. Ele dizia para as suas vítimas que era heróico sofrer cada um em sua cama específica, fabricada de árvores que cresciam em todo o país - uma razão não menos irracional, porém, agora uma razão patriótica para as suas torturas.

E realmente, desta vez alguns gigantes e não-gigantes se colocavam como voluntários aqui. No geral, as maldições foram diminuindo com o tempo. Por encontrarem motivos para a ação de Procrusto, eles também encontravam consolo para tanto sofrimento. Houve até gigantes aleijados e não-gigantes aleijados que se convenceram de que haviam sido torturados para um futuro melhor. Por causa disso, pelo menos a chegada de Procrusto não era mais amaldiçoada, pois, com o tempo, as gigantes, através de uma adaptação evolucionária, passaram a dar à luz aleijados não-gigantes e as não-gigantes, a aleijados gigantes, de modo que Procrusto, no geral, não precisou mais torturar. Outros contentavam-se em morrer desse modo, desde que assim, esperavam eles, no futuro não houvesse mais nenhuma tortura.

Em virtude das razões apresentadas, os torturados eram levados a suportar a tortura, mesmo sendo ela irracional. Só alguns poucos gigantese não-gigantes torturados insistiam depois que a cama de tortura e a tortura fossem inutilizadas. Isso era o que Procrusto mais odiava. Ele ainda se revoltava com o fato de as pessoas não entenderem que ele não torturava por prazer, mas sim por um necessidade histórica. Tendo em vista que, a fim de não mais ouvir as queixas e gritarias, ele sempre imaginava motivos para torturar, ele acreditava que, com o tempo, a história só podia ter um sentido se ela progredisse, e se tal progresso consistisse em que ela fosse sempre mais justa, e ela só é mais justa se, a partir da desigualdade dos homens, ela se desenvolve em direção à igualdade deles.

Enquanto isso, o jovem Teseu caminhou de Tróia para Atenas, para lá se tornar rei, como filho de Egeu. Visto que ele concebia a política desde um ponto de vista prático novo, ele também veio a Coridalos. Lá ele ouviu e se admirou com a Ideologia de Procrusto.

"Tu precisas admitir que eu estou agindo de maneira razoável", disse Procrusto, orgulhoso, "a própria Palas Atenas não sabia me replicar".

"Tu ages tão irrazoavelmente quanto Pitiocampto, o podador de abetos, quando ele corta o andarilho em dois, e os enxerta nos troncos de dois abetos tortos e então os deixa crescer", respondeu Teseu. "A única diferença entre Pitiocampto e tu consiste em que ele não imaginou que devesse cortar em nome da justiça dos homens. Ele o fazia pelo puro prazer da crueldade".

"Pitiocampto é meu filho", disse Procrusto, pensativamente.

"Eu o matei", respondeu Teseu, tranqüilamente.

"Agiste corretamente", disse Procrusto, depois de longo pensar, "embora Pitiocampto fosse meu filho. Não é permitido matar pelo puro prazer da crueldade".

Assim, enquanto Procrusto queria cumprimentar Teseu agradecido, este jogou o gigante com tal força na pequena cama que a terra estremeceu.

"Seu louco", ele disse, e abateu Procrusto, que lhe encarava com os grande olhos, admirado. "Você foi retirado do hálito da razão muito cedo. As pessoas não são iguais, mesmo se não houvesse gigantes e não-gigantes, mas só gigantes, ou só não-gigantes. E porque as pessoas não são iguais, algumas maiores, outras menores, cada gigante tem o direito de ser um gigante, e cada não-gigante de ser um não-gigante. Ambos são iguais apenas perante a lei. Se tu tivesses introduzido esta lei, terias evitado que os gigantes dominassem os não-gigantes, ou, o que poderia bem ser o caso, que fossem os gigantes prejudicados pelos não-gigantes. Com isso, você teria poupado seus conterrâneos dessa tortura absurda".

E, assim, Teseu primeiramente cortou as pernas de Procrusto e, porque este já era especialmente um gigante grande, cortou-lhe também a cabeça, que ainda murumurava ao ser decepada:

"Eu só estava sendo justo". E então a cabeça ainda disse, enquanto ainda estava em cima do pescoço, antes que os grandes olhos se fechassem: "Eu jamais fizera mal algum aos homens".

Depois disso, Teseu caminhou de volta a Atenas para junto de seu pai Egeu. Infelizmente, Teseu era não apenas um herói; ele era também esquecido. Ele se esquecera, quando estava com Procrusto, que não matara apenas o seu filho Pitiocampto, mas sim também engravidara a sua neta, Periguna. Ele simplesmente se esqueceu de tudo. Seu lenço estava cheio de nós, era inútil. Ao regressar de Creta, ele esqueceu Ariadne na ilha de Naxo, que lhe salvara do labirinto, e assim esqueceu de levantar a vela branca, de modo que o seu pai atirou-se ao mar, porque ele pensou que Teseu fora morto pelo Minotauro no labirinto. Por causa disso, Teseu tornou-se rei. Infelizmente, ele também esquecera do seu inteligente discurso a Procrusto: não que ele fora particularmente um mal rei - ele está, de fato, bem colocado na escala dos reis -, mas abaixo dele nem todos eram iguais perante a lei, alguns mais iguais que outros. Isto porque Teseu também era esquecido como marido: seus amores colocaram tantas vezes os atenienses em apuros que eles reconheceram seu verdadeiro valor apenas gerações após a sua morte".

Albrecht Knaus Verlag - Tradução: Marco Antonio Franciotti e Celso Braida

A poesia humanitária

The_cemented_garden__by_Raccoon_with_a_cigarO Operário da Utopia
Apanhado em meio à noite,
jogado no chão da cela,
o corpo conhece, nú,
a primeira humilhação.
Outras virão: o soco,
o choque, a ameaça,
o urro na escuridão.
- Quantos volts
suporta o corpo
- em coação,
até que dele escorra o fel
da delação?

- O que procura o torturador
nas pedras do rim alheio
como vil minera/dor?
-O que ama esse ama/dor
da morte?
esse morcego suga/dor
sob os porões da corte?
esse joga/dor
do jogo bruto?
esse serviçal da morte
e cria/dor
- do luto?

O torturador se julga, e acaso o é,
um trabalha/dor diferente:
seu trabalho é destruir
o sonha/dor insistente
como o médico que resolvesse
matar de dor
- o paciente.
Mas sob a tortura
o que há de melhor no homem.
jamais se manifesta. Quando muito
podeis catar pelo chão
o pouco que dele resta.
Mas soltai-o em festa, ao sol
e vereis que a verdade
de seus gestos se irradia.
Livre
vestindo a pele do dia,
o torturado caminha
com seu corpo tatuado
de violência e poesia.
Mas ele não marcha só.
Apenas segue na frente
na direção da utopia.

Os Desaparecidos
De repente, naqueles dias, começaram
a desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Ia-se colher a flor oferta
e se esvanecia.
Eclipsava-se entre um endereço e outro
ou no táxi que se ia.
Culpado ou não, sumia-se
ao regressar do escritório ou da orgia.
Entre um trago de conhaque
e um aceno de mão, o bebedor sumia.
Evaporava o pai
ao encontro da filha que não via.
Mães segurando filhos e compras,
gestantes com tricots ou grupos de estudantes
desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
e médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos se diluiam
- mal ligavam o tôrno do dia.

Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Desaparecia-se a olhos vistos
e não era miopia. Desaparecia-se
até a primeira vista. Bastava
que alguém visse um desaparecido
e o desaparecido desaparecia.
Desaparecia o mais conspícuo
e o mais obscuro sumia.
Até deputados e presidentes esvaneciam.
Sacerdotes, igualmente, levitando
iam, arefeitos, constatar no além,
como os pescadores partiam.

Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Os atores no palco
entre um gesto e outro, e os da platéia
enquanto riam.
Não, não era fácil ser poeta naqueles dias.
Porque os poetas, sobretudo
- desapareciam.
Se fosse ao tempo da Bíblia, eu diria
que carros de fogo arrebatavam os mais puros
em mística euforia. Não era. É ironia.
E os que estavam perto, em pânico, fingiam
que não viam. Se abstraíam.
Continuavam seu baralho a conversar demências
com o ausente, como se ele estivesse ali sorrindo
com suas roupas e dentes.

Em toda família à mesa havia
uma cadeira vazia, a qual se dirigiam.
Servia-se comida fria ao extinguido parente
e isto alimentava ficções
- nas salas e mentes
enquanto no palácio, remorsos vivos boiavam
- na sopa do presidente.
As flores olhando a cena, não compreendiam.
Indagavam dos pássaros, que emudeciam.
As janelas das casas, mal podiam crer
- no que viam.
As pedras, no entanto,
gravavam os nomes dos fantasmas
pois sabiam que quando chegasse a hora
por serem pedras, falariam.

O desaparecido é como um rio:
- se tem nascente, tem foz.
Se teve corpo, tem ou terá voz.
Não há verme que em sua fome
roa totalmente um nome. O nome
habita as vísceras da fera
Como a vítima corrói o algoz.

E surgiam sinais precisos
de que os desaparecidos, cansados
de desaparecerem vivos
iam aparecer mesmo mortos
florescendo com seus corpos
a primavera de ossos.

Brotavam troncos de árvores,
rios, insetos e nuvens em cujo porte se viam
vestígios dos que sumiam.

Os desaparecidos, enfim,
amadureciam sua morte.

Desponta um dia uma tíbia
na crosta fria dos dias
e no subsolo da história
- coberto por duras botas,
faz-se amarga arqueologia.

A natureza, como a história,
segrega memória e vida
e cedo ou tarde desova
a verdade sobre a aurora.

Não há cova funda
que sepulte
- a rasa covardia.
Não há túmulo que oculte
os frutos da rebeldia.
Cai um dia em desgraça
a mais torpe ditadura
quando os vivos saem à praça
e os mortos da sepultura.

Affonso Romano de Sant'anna

sábado, junho 09, 2007

Um dia na vida do Brasilino e "quase" nada mudou...

"Não sei se você conhece o Brasilino!? Mas isso não importa...

Brasilino – é um homem qualquer, que mora num apartamento qualquer, numa cidade qualquer... Situemo-lo em Santos, por exemplo.

Brasilino, como todo o bom burguês, começa o dia acordando; sim, porque o operário, este, levanta-se ainda dormindo a fim de chegar a tempo ao serviço.

Brasilino acorda e aperta o botão da campainha à cabeceira da cama, campainha essa que soa na copa; porem soa, consumindo energia – energia que é da Light, e, assim, o Brasilino inicia o seu dia pagando dividendos ao CAPITAL ESTRANGEIRO. Mas Brasilino não pensa nisso e começa o seu dia, feliz!

Abre-se a porta. É Marta, a criada, que entra com o café da manhã: café, leite, pão, manteiga, um pouco de geleia e o jornal – “O Estado de São Paulo”. – Brasilino, como todo o bom burguês, lê somente a boa imprensa – a chamada sadia.

Enquanto lê as notícias, toma a sua primeira refeição. Brasilino não sabe que o leite, que bebe, é originário de uma vaca que foi alimentada com farelo REFINAZIL, da “Refinações de Milho do Brazil” (Brasil com Z), que é americana, e que a farinha com a qual foi feito o pão é originária do “Moinho Santista”, que não é santista e sim inglês. Assim, para tomar o seu café da manhã, Brasilino tem que pagar dividendos ao CAPITAL ESTRANGEIRO. Mas, Brasilino nem sabe disso... e toma o seu café, bem feliz!

Terminado o café, Brasilino acende o seu primeiro cigarro: Minister, ou Hollywood, um desses da “Cia. Souza Cruz”, que não é do Sr. Souza e muito menos do Sr. Cruz, mas, sim, da “British, American Tobacco Co.”, o “trust” anglo-americano do fumo. E assim, para fumar seu cigarrinho, Brasilino paga dividendos ao CAPITAL ESTRANGEIRO. Mas Brasilino nem pensa nisso e saboreia seu cigarrinho, feliz... feliz...

Em seguida, Brasilino vai ao quarto de banho, fazer a sua toilette: acende o aquecedor de gás- gás que é da City e, portanto, do grupo Light, e, enquanto a água aquece, toma da escova de dentes, marca “TEK”, da “Johnson & Johnson do Brasil” (que é americana), e da pasta dentifrícia “KOLYNOS”, com clorofila, da “Whitehall Laboratories of New York” e, assim, para escovar os dentes, Brasilino paga dividendos ao CAPITAL ESTRANGEIRO...

Mas Brasilino nem pensa nisso...

Brasilino não sabe bem o que é clorofila e está certo de que, quando entrou na farmácia e escolheu essa pasta, o fez livremente; ignora que sua vontade foi condicionada pelas custosas campanhas de promoção de vendas, feitas através da imprensa, do rádio e da televisão e que, da mesma forma como ele escolhe sua pasta de dentes, escolhe, também, o seu candidato à Presidência da República.

Em seguida, Brasilino vai fazer a barba: toma do pincel, feito com fios de Nylon, da “Rhodia” – que é francesa – enche-o com creme de barbear “Williams”, que é americano. Ensaboado o rosto, Brasilino toma seu aparelho “Gillette”, munido com lâminas “Gillette”, ambos da “Gillette Safety Razor do Brazil”, e, feliz, vai raspando a face, pois nem pensa que, para fazer sua barba, tem que pagar dividendos ao CAPITAL ESTRANGEIRO...

Terminada a barba, Brasilino entra no banheiro, envolvendo o corpo com a espuma acariciadora de um desses sabonetes, “Lever” ou “Palmolive”, um desses cuja espuma acaricia o corpo de 9, entre 10 estrelas de Hollywood. E assim, até para tomar seu banho, Brasilino tem que pagar dividendos ao CAPITAL ESTRANGEIRO.

Após o banho, Brasilino enxuga-se com uma toalha felpuda da “Fiação da Lapa”, que também não é da Lapa porque é Suíça e, a seguir, passa pelo corpo talco “Johnson”, da “Johnson & Johnson do Brasil”.

E... começa a vestir-se.

Acontece, então, uma tragédia! Cai um botão da camisa do Brasilino. Ele toca novamente a campainha, e Marta corre a socorrer o nosso herói, munindo-se de agulha e linha. Dentro de poucos instantes, ao ver Marta cortar a linha com os dentes, depois de preso o botão, Brasilino sente-se novamente feliz. Feliz porque ele não sabe que Marta, a criada, para pregar o botão, usou a linha marca “Corrente” da “Cia. Brasileira de Linhas para Coser”, que é inglesa e que, até para pregar um botão, Brasilino tem de pagar dividendos ao CAPITAL ESTRANGEIRO.

Já vestido, Brasilino despede-se de Marta, avisando que não virá almoçar nem jantar, pois irá a São Paulo, a negócios... – Sai, bate a porta, toma o elevador, que é “Schindler”, da “Schindler do Brasil”, que é suíça, e movido por força fornecida pela Light, e chega ao pavimento térreo. Dá bom dia ao zelador e toma o seu automóvel “Volkswagen”, fabricado pela “Volkswagen do Brasil”, que é alemã, rodando sobre pneus “Firestone”, da “Firestone do Brasil” que é americana, acionado por gasolina refinada pela “Petrobrás”, mas distribuída pela “Esso Standard do Brasil”, que é americana. Até para usar a gasolina, refinada pela Petrobrás, Brasilino paga dividendos ao CAPITAL ESTRANGEIRO! Ele não sabe que os brasileiros têm capacidade para refinar o petróleo e produzir a gasolina, mas não a têm para a “difícil” tarefa de distribuí-la e que, para esse serviço – a simples distribuição – as companhias distribuidoras (Esso–Shell– Gulf–Texaco, etc.) ganham muito mais que a Petrobrás. Mas Brasilino ignora tudo isso... e Brasilino é feliz!

Pouco depois, Brasilino encontra-se na Via Anchieta, dirigindo-se a São Paulo. Ao passar por Cubatão e ao ver a Refinaria Presidente Bernardes, põe-se a pensar: “Porcaria essa Petrobrás! agora que a gasolina é nacional, custa cinco vezes mais.” – Sim, porque Brasilino não reflete que a gasolina custa, agora, muito mais, por um motivo muito simples: ao tempo em que a gasolina era importada, o dólar custava Cr$ 18,72 e, atualmente, para a importação de óleo bruto, custa Cr$ 200,00. – Não sabe, também, que o dólar está caro porque é escasso, e é escasso devido à procura, e a procura é muito grande, porque os dólares obtidos com a exportação brasileira, mal dão para fazer face às remessas de royalties e dividendos do CAPITAL ESTRANGEIRO.

A irritação do nosso herói, contudo, logo desaparece, pois a algumas centenas de metros à frente, Brasilino vê surgirem os dutos da Light e uma grande tabuleta com os seguintes dizeres: LIGHT AND POWER, a maior usina hidrelétrica da América do Sul – 1.200.000 KW. – Aí, Brasilino exulta e monologa com entusiasmo – “Isto sim! A Light! A Light! A Light que fez a grandeza de São Paulo.” Sim, porque Brasilino confunde Light com Energia. Ele não sabe que o que fez a grandeza de São Paulo não foi a Cia. Light e sim a Energia e que, se a Energia não pertencesse à Light, São Paulo seria dez vezes maior, ou o Brasil dez vezes menos miserável.

O interessante é que Brasilino nunca perguntou, a si mesmo, que seria da Inglaterra se não existissem as Lights pelo mundo.

Brasilino prossegue a viagem e, logo mais, atinge o altiplano, onde vê descortinar-se o panorama grandioso do progresso industrial, que ele julga ser do Brasil: “Volkswagen do Brasil” – “Mercedes Benz do Brasil” – “Willys Overland do Brasil” – “General Motors do Brasil” – “Rolls Royce do Brasil” – “Cia. Brasileira de Peças de Automóveis” – “Simca do Brasil” – “Plásticos do Brasil” e inúmeras outras “do Brasil” e “brasileiras”, mas todas elas ESTRANGEIRAS.

Brasilino, afinal, chega a São Paulo. Estaciona o seu carro em uma das ruas do centro e, a pé, alcança a Rua Líbero Badaró, para concluir um negócio. Brasilino recorda-se de que Líbero Badaró foi um homem que, ao ser assassinado, exclamou: “Morre um liberal, mas não morre a Liberdade!” E Brasilino conclui: “Que sujeito burro! Que interessa a Liberdade para um homem que já morreu!?”

Enquanto assim pensa, Brasilino chega aos escritórios da “Crescinco, Cia. de Investimentos”, pertencente ao Sr. Rockefeller. Brasilino sente-se orgulhoso de emprestar o seu dinheiro a um dos homens mais ricos do mundo, mas que, para financiar as suas indústrias, prefere usar o dinheiro dos próprios brasileiros, atraindo-os com a vantagem de juros de 2% ao mês e livre de imposto de renda. Brasilino não sabe que, entre o dia em que ele entregou o dinheiro e o dia em que esse mesmo dinheiro lhe foi devolvido, a desvalorização da moeda foi de 4% ao mês e assim , ele está menos rico, pois esse juro e mais os lucros da Cia. Investidora terão, forçosamente, de ser acrescentados ao custo das utilidades, saindo, consequentemente, da própria pele do Brasilino. Mas Brasilino não sabe disso e recebe o seu dinheiro e os juros, feliz!

Liquidado o negócio, Brasilino vai almoçar. – Entra num restaurante onde lhe é servido, como antepasto: frios da “Armour do Brasil”, que é americana, Margarina “Clay-Bon”, de “Anderson Clayton” que é americana, toma uma “Coca-Cola” e saboreia um prato de massa, preparado com farinha do “Moinho Paulista”, que é inglês, e, depois, come um filé com fritas, cuja carne foi fornecida pelo “Frigorífico Wilson” e as batatas foram fritas com óleo “Mazola”, da “Refinações de Milho Brazil” (Brazil com Z). Como sobremesa, comeu um pudim feito com “Maizena Duryea” também da “Refinações de Milho Brazil” e, assim, até para comer, Brasilino tem que pagar dividendos ao CAPITAL ESTRANGEIRO. Após o almoço, Brasilino passeia pela cidade, a fim de fazer hora para o cinema, gastando a sola do sapato com saltos de borracha “Good Year”, pagando, até para andar, dividendos ao CAPITAL ESTRANGEIRO.

Brasilino entra no Cine Metro, onde passa a tarde, deliciando-se com um filme, que é americano e, para passar algumas horas distraídas, Brasilino paga dividendos ao CAPITAL ESTRANGEIRO.

Ao sair do Cinema, Brasilino sente uma leve indisposição; entra numa farmácia e toma um “Alka-Seltzer”. E, assim, até para prevenir uma indigestão, Brasilino precisa pagar dividendos ao CAPITAL ESTRANGEIRO.

Toma novamente o seu carro e volta para Santos. Chegando à casa, faz novamente a sua toilette, liga o rádio de cabeceira, marca “G.E.” da “General Electric do Brasil”, e deita-se sobre um colchão de espuma de borracha “Foamex” da “Firestone do Brasil” e repousa a cabeça, sobre um travesseiro do mesmo material, dormindo, feliz, o sono da inocência.

Não sei porque, mas a história do Brasilino traz sempre, à mente, aquelas magníficas palavras do Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os pobres de espírito porque será deles o reino dos céus.”

Mas uma coisa jamais será do Brasilino: O REINO EM SUA PRÓPRIA TERRA.

Por isso, leitor, se alguém lhe disser que não existe imperialismo econômico, no Brasil, é porque está ENGANADO, ou porque ESTÁ ENGANANDO VOCÊ. "

Paulo Guilherme Martins - Santos, Outono de 1961

Destino mineral

LilyaCornelli-a sOoL!!
"Sou feita de uma carne perecível futuro de outra carne,
sem nenhuma eternidade.
A rocha é uma invencível parte da terra;
que ela me resuma no seu mesmo destino mineral.
A solidez ausente que tortura nossa matéria frágil,
no final se renderá:
serei de pedra dura.
Nunca mais chorarei nessa passagem de poesia.
Com nítida certeza,
recorto nas montanhas minha imagem
mais que raiz,
expressa na beleza.
Pela terra em que não me desfiguro,
hei de surgir um dia
em cristal puro."

Lupe Cotrim Garaude

Cascando

Love_by_ThierryV-a sOoL!!1

"Fosse apenas o desespero da ocasião
da descarga
de palavreado
perguntando se não será melhor
abortar que ser estéril
as horas tão pesadas
depois de te ires embora
começarão sempre a arrastar-se
cedo de mais as garras
agarradas às cegas à cama da fome
trazendo à tona os ossos
os velhos amores
órbitas vazias
cheias em tempos de olhos
como os teus sempre
todas perguntando se será melhor
cedo de mais do que nunca
com a fome negra a manchar-lhes as caras
a dizer outra vez
nove dias sem nunca flutuar o amado
nem nove meses
nem nove vidas

2

A dizer outra vez se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo para as últimas vezes últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama em que se sabe e não se sabe
em que se finge uma última vez mesmo para as últimas vezes
em que se diz se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei palavras rançosas
a resolver outra vez no coração
amor amor amor
pancada de velha batedeira pilando o sono inalterável das palavras
aterrorizado outra vez
de não amar de amar
e não seres tu de ser amado
e não ser por ti
de saber e não saber
e fingir e fingir eu e todos os outros
que te hão-de amar se te amarem

3

A não ser que te amem..."

Samuel Beckett - trad. Miguel Esteves Cardoso