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"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

domingo, junho 24, 2007

Misericórida e Justiça...

Hanging_by_neon_lilith-a sOoL!!"'O acusado que vacilar nas respostas, afirmando ora uma ora outra coisa, vai para a tortura. O suspeito que tiver pelo menos uma testemunha contra si vai para a tortura. O acusado contra quem pesarem vários indícios veementes, mesmo se não houver testemunhas de acusação, vai para a tortura. Com muito mais razão vai para a tortura quem, além dos indícios, tiver contra si o depoimento de uma testemunha.'

Essas regras foram tiradas quase literalmente do "Manual dos Inquisidores", escrito pelo frade dominicano Nicolau Eymerich em 1376, revisto e ampliado pelo também dominicano Francisco de la Peña em 1578. Eymerich foi ele próprio inquisidor. De La Peña atualizou as instruções, compatibilizando as inquisições romana e espanhola. A tortura de acusados e suspeitos foi autorizada em 1252 pelo papa Inocêncio 4º. A partir de 1542 a Congregação do Santo Ofício, por meio de seus tribunais, centralizou o controle de todos os assuntos e procedimentos relativos à Inquisição. O lema do Santo Ofício era: "Misericórdia e Justiça".

A finalidade da tortura, como esclarece de La Peña, é menos provar um fato do que forçar o acusado a confessar a culpa. A confissão é o objetivo central da atividade inquisitória. Para chegar a ela, o inquisidor pode usar de truques, malícia, fraudes e, em último caso, tortura. O inquisidor dirá ao acusado ou suspeito que já sabe de tudo, mesmo que não saiba, fingirá ler documentos incriminadores, prometerá perdão (mesmo que não tenha autoridade para dá-lo), colocará junto ao acusado antigos cúmplices para levá-los à confissão pela fraude e, finalmente, se nada disso funcionar, avisará que terá que usar a tortura. Da tortura em processos por crime de heresia não escapava ninguém. Crianças de menos de 14 anos não eram torturadas: "Elas serão aterrorizadas e chicoteadas, mas não torturadas".

O manual não descreve os métodos de tortura porque os julga de conhecimento geral. Os principais eram o pau, as cordas, o cavalete, a polé (roda eriçada de farpas) e as brasas. Critica os inquisidores que inventam novas torturas e os que exageram em sua aplicação a ponto de matar as vítimas ou de fraturar seus membros e deixá-las doentes para sempre. O acusado deve sair inteiro da sessão de tortura, seja para ser libertado, seja para ser executado.

A Inquisição foi autorizada a funcionar em Portugal em 1536 e só foi extinta em 1821. No Brasil, governadores, ouvidores-gerais e bispos exerciam no início a função inquisitorial. Além disso, havia as visitações oficiais do tribunal português do Santo Ofício. A primeira chegou em 1591 e atuou na Bahia e em Pernambuco até 1595.

Outra visitação ocorreu em 1618, também na Bahia. A mais ilustre vítima da Inquisição no Brasil foi Antônio José da Silva, o Judeu, levado a Portugal e queimado em auto-de-fé. Juntando-se Portugal e colônias, calcula-se que cerca de 30 mil pessoas tenham sido julgadas, metade das quais foram para a fogueira.

A investigação e punição de crimes civis, não religiosos, eram reguladas pelas disposições do Livro 5º das "Ordenações Filipinas", publicadas pela primeira vez em 1603. Segundo o título 133 do Livro 5º, denominado "Dos Tormentos", se o julgador achasse que havia motivos suficientes para crer na culpa do acusado, "mandá-lo-á meter a tormento". O tormento seria repetido se o acusado confessasse sob tortura mas depois se negasse a ratificar o confessado. As penas contidas no Livro 5º incluíam a morte natural cruelmente para o crime de lesa-majestade (lembremo-nos de Tiradentes), a morte por fogo até virar pó, para sodomitas e incestuosos, o corte das mãos seguido de morte para assassinos, a queima com tenazes ardentes, seguida do corte das mãos e enforcamento para escravos que matassem seus senhores, os açoites etc. Entre as penas menores, uma das mais usadas era o degredo para a África e o Brasil. O Livro 5º vigorou no Brasil até a publicação do Código Criminal em 1830, muito da parte civil das "Ordenações" até a publicação do Código Civil em 1916.

The_One_I_Want_3_by_KarlLEmmett-a sOoL!!No mundo das relações privadas, sobretudo entre escravos e senhores, a imaginação de instrumentos e modalidades de tortura não conheceu limites: correntes, troncos, máscaras, palmatória, chicote, ferro de marcar a quente, castrações, amputações de membros, assamento em fornalhas, corpo untado de mel no formigueiro. A Marinha recorria à chibata para lanhar o lombo dos marinheiros até que a revolta de João Cândido e seus companheiros pôs fim à prática em 1910. O Exército usava a espada para dar surras nas praças. Como observou mais tarde um marinheiro contemporâneo de João Cândido, foram as chicotadas e lambadas que o fizeram entrar "na compreensão do que é ser cidadão brasileiro".

Não é preciso listar as inovações tecnológicas na tortura introduzidas pelas Forças Armadas durante a ditadura. Como diziam Eymerich e De la Peña, elas são de conhecimento geral. Também é de conhecimento geral a prática de tortura nas delegacias de polícia, colocada recentemente em evidência por reportagens sobre episódios policiais em vários Estados da federação. Quem fizesse uma história das delegacias de polícia desde 1841, quando a reforma do Código de Processo Criminal passou para os delegados as atribuições dos juízes de paz, mostraria facilmente que pouco mudou até hoje no que se refere aos métodos de extrair confissão de presos.

Esses métodos são exemplificados pela entrevista de um investigador da polícia civil do Pará publicada na Folha do último dia 18 de outubro (1999). Dizendo-se dos menos violentos entre os companheiros, o investigador informa que a palmatória e os choques elétricos são rotina nas delegacias e necessários para lidar com bandido que não quer confessar: "Trinta bolos de um lado, 20 do outro, se nunca apanhou da mãe, entrega tudo". "Palmatória é negócio normal", resume. Os métodos e a mentalidade do investigador de 1999 não diferiam daqueles usados pelos inquisidores desde o século 14. Tudo muito antigo, tudo muito nosso, tudo parte de nossa herança. A reação indignada à tortura só se verificou depois que as Forças Armadas a estenderam à classe média durante a ditadura. Preto e pobre sempre apanharam.

Novidade mesmo neste fim de século só o esquartejamento com moto-serra."

José Murilo de Carvalho - in: Folha online - Brasil 500 anos - 14/11/1999.

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