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Música Brasileira

"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

terça-feira, maio 29, 2007

A Rosa do gueto

"Em 21 de setembro de 1939, quase três semanas após o início da II Guerra Mundial, Reinhardt Heydrich, chefe da Polícia de Segurança do Terceiro Reich, enviou uma circular aos seus subordinados, com instruções para o que os nazistas chamavam de “Solução Final” – o extermínio da população judaica nos territórios ocupados.

Em 20 de janeiro de 1942, ao encerrar a mais importante conferência realizada no Departamento Central de Assuntos Raciais, Heydrich determinou que a “Solução Final” fosse apressada. No cumprimento das ordens, o “gauleiter” da Polônia, Hans Frank, recusou-se a fornecer alimentação às 450 mil pessoas confinadas no Gueto de Varsóvia, em um espaço que só comportava 150 mil.

Tinha 15 anos. Chamava-se Rosa, como muitas mulheres do seu povo. No Gueto, todos passavam fome e tinham medo. Rosa sentia-se só e aturdida. Quando olhava para cima, o universo era feito de sol, de azul, de nuvens brancas. Quando olhava para frente, o mesmo universo ficava cinzento e escorria pelo chão coberto de detritos, para terminar abruptamente junto ao muro. Foi ali que ela encontrou a roseira quase murcha e coberta de pó.

A partir de 22 de julho de 1942, os nazistas acionaram ao máximo a máquina de horrores. Em menos de um ano, somente 60 mil pessoas sobreviviam no Gueto. As demais tinham morrido de fome ou sido assassinadas quando procuravam pular o muro em busca de comida. E também enviadas às câmaras de gás.

Schmilek a viu ajoelhada junto ao muro. Pensou que ela enlouquecera.

“Rosa, que fazes? – perguntou aflito”.

Ela sorriu. Apontou a roseira.

“Estava quase morta. Acho que a salvei”, disse Rosa.

Schmilek respirou fundo e movimentou as mãos num cacoete de impaciência muito próprio dos homens de seu povo. Ficou só no gesto.

Aquele sorriso apagava o muro cinzento e os seios de Rosa arfavam, na esperança da vida ressurgente.

Em janeiro de 1943, Himmler fez uma visita-surpresa a Varsóvia. Não ficou satisfeito ao saber que lá ainda restavam 60 mil judeus. Suas ordens foram intransigentes: liquidação total até 15 de fevereiro.

Rosa o chamou alvoroçada:

“Schmilek!... a roseira!...”

Ele olhou a planta. Um pequeno botão despontava. Tentou falar, dizer o que estava acontecendo no Gueto, mas desistiu. Dentro dos olhos de Rosa só havia flores. Ela não se sentia mais só nem aturdida.Então Schmilek sorriu com muita dificuldade, a custo contendo as lágrimas.

Os alemães encontraram dificuldades para cumprir as ordens de Himmler. O desastre de Stalingrado e as contínuas retiradas do exército nazista da frente russa provocaram escassez de transportes. Era impossível retirar os judeus do Gueto em tão pouco tempo para conduzi-los aos campos de extermínio.

Só em março a operação pôde ser iniciada. Mas sobreveio novo obstáculo: os judeus começaram a resistir. Então, foi ordenada a destruição do Gueto e o massacre de seus habitantes.

Quanto o botão desabrochou, a rosa apareceu muito vermelha. Ela pediu:
“Colhe a rosa, Schmilek. Colhe e me oferece”.

In_keeping_what_you_feel_by_myownlittlecorner-a sOoL!!
Havia muito de céu nos olhos de Rosa. E também um apelo de amor.

Era o momento de contar a verdade.

“Rosa, nós vamos morrer”.

A dor brotou dos olhos da menina, apagando o céu e o apelo de amor. O silêncio desceu entre os dois.

Schmilek tomou-lhe a mão. Caminharam até onde havia uma fenda no muro.

“Olha”.

Rosa viu um soldado alemão. Ansiosa, buscou alguma coisa que o fizesse diferente. Só podia ver que o soldado era de carne e osso como eles.

“Ele não gosta de rosas?” perguntou, sem conseguir entender.

Schmilek aconchegou-a junto a si, procurando algo que a consolasse.

“Ele gosta de rosas”, murmurou.

“Por que, então?”

“Disseram-lhe que éramos maus. Que o odiávamos. Agora acha que somos maus e nos odeia”.

“Vamos falar com o soldado, Schmilek. Vamos mostrar a rosa. Dizer que é mentira. Que somos bons, que amamos a todos. Ele nos amará também. Todos seremos felizes”.

Schmilek sacudiu os ombros em desânimo. Falou quase sem inflexão na voz:

“Inútil. Não acreditaria”.

Rosa calou-se. Voltou para a roseira. Começou a acariciar a flor recém-desabrochada, como se a estivesse gerando em suas próprias entranhas. De repente, irrompeu em alegria:

“Vai nascer outro botão! Vai nascer outro botão, Schmilek! Preciso cuidar dele, também!”

Schmilek não resistiu mais. Os soluços o sacudiam. Não pôde evitar que as palavras lhe saíssem aos gritos:

“Mesmo sabendo que vamos morrer, insistes nesta idéia maluca de cuidar de rosas!?”

Rosa não se alterou. Pelo contrário, estava calma. E eternamente calma, colheu a flor e beijou suas pétalas.

“Só porque alguém não acredita em nosso amor, devemos esquecer as rosas?”

Em 19 de abril, o general nazista Stroop atacou o Gueto com blindados, artilharia, lança-chamas e dinamite.

Os judeus tinham somente alguns fuzis e duas metralhadoras. Assim mesmo, refugiados na rede de esgotos, lutaram até 16 de maio, quando foram vencidos pelo fogo que os nazistas atearam no Gueto.

Toda a resistência cessou ao ser dinamitada a grande sinagoga da rua Tlomacki.

Não podiam esperar mais.

“Vamos” convidou Schmilek, apontando o caminho dos esgotos.

Ela vacilava.

“E a minha rosa?”

“Traze-a contigo. Estaremos juntos, os três”.

“Não, a rosa precisa viver”.

E sem que Schmilek entendesse o gesto, jogou a flor por cima do muro. Depois foi a escuridão dos esgotos.

Hans Frank, gauleiter da Polônia, olhou feliz para a flor que estava em cima de sua mesa de trabalho. Um soldado a tinha encontrado, lhe dissera o general Stroop. Era tudo que restava do Gueto.

Frank afagou o rosto com a flor, para sentir a maciez das pétalas. De alma leve, flutuando em bem-aventurança, começou o relatório:

“O Gueto de Varsóvia deixou de existir...”.

... para que as rosas não passem e os tiranos não fiquem... "

Jayme Copstein

quinta-feira, maio 24, 2007

Nota de falecimento

"Brasília, um dia qualquer desta primeira década do século XXI – Pereceu hoje, na capital da República, Dona Política Democrática do Bem Comum, após lenta agonia. Causa mortis: falência múltipla de órgãos, após septicemia generalizada. Nesta etapa terminal, seu Executivo só executava a sangue frio, o Legislativo legislava apenas em causa própria, e o Judiciário tardava e falhava. A infecção no regime representativo era crônica. Dona Política, alguns anos antes de morrer, já exalava, em seu bem equipado quarto de moribunda, um cheiro insuportável. As despesas com a longa internação e o sepultamento foram pagos por grandes conglomerados privados, a maioria do setor financeiro.

Ao velório de Dona Política compareceram altas autoridades do país. O Presidente da República deu animada entrevista para correspondentes estrangeiros, dizendo conhecer a indigitada desde os tempos da Grécia Antiga, quando era considerada amiga fiel de todos – à exceção dos escravos, das mulheres e dos estrangeiros.

Senadores de sábias cabeças brancas, contristados, confabulavam no velório. O momento de nojo (como eles continuam a denominar o luto) fez com que notórios adversários de ocasião, que tinham protagonizado recente duelo para provar quem era mais canalha, ficassem lado a lado e até trocassem algumas idéias.

Alguns representantes da esquerda também compareceram. As lágrimas sinceras pelo passamento de Dona Política Democrática não duraram muito: logo foram secando e a perplexidade deu lugar a um inusitado conformismo, na linha do “a vida é assim mesmo” e “Deus sabe o que faz”. “O jeito é seguir em frente e nos acostumarmos com sua ausência”, disse um deputado que fora líder estudantil há 30 anos, com seu corpo 30 quilos mais pesado.

Nos_Da_Cariad_by_Foxfires-a sOoL!!

Coroas de flores abarrotavam a capela. As mais vistosas eram as assinadas pelo FMI e pelo Banco Mundial. O Presidente dos EUA enviou mensagem, afirmando saber o que os brasileiros estavam sentindo, pois seu país já vivera essa perda há muito, levando o povo norte-americano a reagir com o consumo compulsivo de hambúgueres, coca-colas, drogas, sexo e credit card. Comunicadores de elevada audiência, através da TV, explicavam que a morte era esperada, pois Dona Política, idosa e “jurássica como a idéia de Nação”, já não cumpria função relevante no mundo globalizado do capital volátil, dos fluxos especulativos sem fronteira e dos internautas egocentrados no ciberespaço.

O sepultamento será no jazigo perpétuo da família Camaleão (aquela oligarquia pluriétnica, que muda de cor conforme a situação, e sub-ética, com moral de ocasião), no poder há 500 anos.

A nota dissonante das exéquias foi a invasão da capela, quando a tarde caía, por um menino maltrapilho, que circulou entre os presentes assoviando a música “O que será”, de Chico Buarque, para constrangimento geral. Retirado por seguranças, ele sumiu na noite que chegava.

No livro de condolências encontrou-se, sem assinatura, uma estranha mensagem: “Há um erro de pessoa aqui. Esta Política que já vai tarde não é a Democrática e do Bem Comum. É uma contrafação dela, nascida no ventre neoliberal da cultura narcísica, da desconstituição da pessoa como agente da História. Quem morreu, sem merecer choro nem vela, foi a política despolitizada da delegação, da desinformação, da submissão do povo como massa de manobra dos bandidos de colarinho branco. Dona Política Democrática do Bem Comum está viva e foi vista, cheia de energia, num acampamento dos sem terra, na boa luta sindical, nas comunidades pobres que se organizam, nas escolas da educação popular, na solidariedade com os desvalidos, naqueles que mantém a utopia comum de novas e fraternas relações humanas e sociais”.

Chico Alencar

Provocações

Big_Bad_Apple_by_Mrichston-a sOoL!!"A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão.

A segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso.

Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz.

Foram lhe provocando por toda a vida. Não pode ir a escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça. Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas.

Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme. Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava. Estavam lhe provocando.

Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça. Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa. Terra era o que não faltava.

Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma.

Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida.

Se animou.

Se mobilizou.

Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação. Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim.

Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou.

Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele:

VIOLÊNCIA NÃO"

Luis Fernando Veríssimo

No mundo há muitas armadilhas

Hope_by_frixin-a sOoL!!"No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha

Tua janela por exemplo
aberta para o céu
e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
a bater antes de Cabral, antes de Tróia
(há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
e depois foi traído, preso, enforcado)

No mundo há muitas armadilhas
e muitas bocas a te dizer
que a vida é pouca
que a vida é louca
E por que não a Bomba? te perguntam.
Por que não a Bomba para acabar com tudo,
já que a vida é louca?

Contudo, olhas o teu filho, o bichinho
que não sabe
que afoito se entranha à vida e quer
a vida
e busca o sol, a bola, fascinado vê
o avião e indaga e indaga

A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade.

Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver
de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e não vais
te matar
e agüentarás até o fim.

O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não têm
há os que têm tanto que sozinhos poderiam
alimentar a cidade
e os que não têm nem para o almoço de hoje

A estrela mente
o mar sofisma. De fato,
o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los
Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las."

Ferreira Gullar

O que os olhos não vêem

Aimee_in_Exile_by_ThisYearsGirl-a a sOoL!!"Havia uma vez um rei num reino muito distante, que vivia em seu paláci ocom toda a corte reinante. Reinar pra ele era fácil, ele gostava bastante. Mas um dia, coisa estranha!Como foi que aconteceu? Com tristeza do seu povo nosso rei adoeceu. De uma doença esquisita,toda gente, muito aflita,de repente percebeu...

Pessoas grandes e fortes o rei enxergava bem. Mas se fossem pequeninas, e se falassem baixinho,o rei não via ninguém. Por isso, seus funcionários tinham de ser escolhidos entre os grandes e falantes, sempre muito bem nutridos. Que tivessem muita força, e que fossem bem nascidos. E assim, quem fosse pequeno,da voz fraca, mal vestido, não conseguia ser visto. E nunca, nunca era ouvido. O rei não fazia nada contra tal situação; pois nem mesmo acreditava nessa modificação. E se não via os pequenos e sua voz não escutava, por mais que eles reclamassem o rei nem mesmo notava. E o pior é que a doença num instante se espalhou.

Quem vivia junto ao rei logo a doença pegou. E os ministros e os soldados, funcionários e agregados, toda essa gente cegou. De uma cegueira terrível,que até parecia incrível de um vivente acreditar, que os mesmos olhos que viam pessoas grandes e fortes, as pessoas pequeninas não podiam enxergar. E se, no meio do povo, nascia algum grandalhão, era logo convidado para ser o assistente de algum grande figurão. Ou senão, pra ter patente de tenente ou capitão. E logo que ele chegava, no palácio se instalava; e a doença, bem depressa,no tal grandalhão pegava.

Todas aquelas pessoas,com quem ele convivia, que ele tão bem enxergava, cuja voz tão bem ouvia, como num encantamento, ele agora não tomavao menor conhecimento... Seria até engraçado se não fosse muito triste; como tanta coisa estranha que por esse mundo existe. E o povo foi desprezado, pouco a pouco, lentamente. Enquanto que o próprio rei vivia muito contente; pois o que os olhos não vêem, nosso coração não sente. E o povo foi percebendo que estava sendo esquecido; que trabalhava bastante, mas que nunca era atendido; que por mais que se esforçasse não era reconhecido.

Cada pessoa do povo foi chegando à convicção, que eles mesmos é que tinham que encontrar a solução pra terminar a tragédia. Pois quem monta na garupa não pega nunca na rédea! Eles então se juntaram, discutiram, pelejaram, e chegaram à conclusão que, se a voz de um era fraca, juntando as vozes de todos mais parecia um trovão.

E se todos, tão pequenos, fizessem pernas de pau, então ficariam grandes, e no palácio real seriam logo avistados, ouviriam os seus brados, seria como um sinal. E todos juntos, unidos, fazendo muito alarido seguiram pra capital. Agora, todos bem altos nas suas pernas de pau.

Enquanto isso, nosso rei continuava contente. Pois o que os olhos não vêem nosso coração não sente... Mas de repente, que coisa! Que ruído tão possante! Uma voz tão alta assim só pode ser um gigante!

Balance_by_cryingsorceress- Vamos olhar na muralha.
- Ai, São Sinfrônio, me valha neste momento terrível! Que coisa tão grande é esta que parece uma floresta? Mas que multidão incrível!

E os barões e os cavaleiros, ministros e camareiros, damas, valetes e o rei tremiam como geléia, daquela grande assembléia, como eu nunca imaginei! E os grandões, antes tão fortes, que pareciam suportes da própria casa real; agora tinham xiliques e cheios de tremeliques fugiam da capital.

O povo estava espantado pois nunca tinha pensado em causar tal confusão, só queriam ser ouvidos,ser vistos e recebidos sem maior complicação. E agora os nobres fugiam, apavorados corriam de medo daquela gente. E o rei corria na frente, dizendo que desistia de seus poderes reais. Se governar era aquilo ele não queria mais!

Eu vou parar por aqui a história... a que estou contando. O que se seguiu depois cada um vá inventando. Se apareceu novo rei ou se o povo está mandando, na verdade não faz mal. Que todos naquele reino guardam muito bem guardadas as suas pernas de pau. Pois temem que seu governo possa cegar de repente. E eles sabem muito bem que quando os olhos não vêem nosso coração não sente."

Ruth Rocha

terça-feira, maio 22, 2007

A ampulheta que vira e revira

"(...) Ao cabo de sete dias, soergueu-se, Zaratustra em seu leito, apanhou uma maçanilha, cheirou-a e achou-lhe grato o cheiro. Então julgaram seus animais que era chegado o tempo de falar com ele.

"Ó, Zaratustra", disseram, "já faz sete dias que estás deitado, com olhos pesados; não queres, finalmente, pôr-te outra vez de pé?

Sai desta caverna; o mundo está à tua espera como um jardim. Brinca o vento com intensos perfumes, que te procuram; e todos os córregos gostariam de seguir os teus passos.

Por ti, que ficaste sozinho sete dias, anseiam todas as coisas. Sai desta caverna! Todas as coisas querem ser teus médicos!

Veio a ti algum novo conhecimento, amargo, doloroso? Como massa fermentada, estiveste deitado, a tua alma crescia e inchava, saindo fora de todas as bordas."

"Ó, meus animais", respondeu Zaratustra, "continuai a tagarelar e deixai que vos escute. Traz-me tamanho conforto ouvir-vos tagarelar; onde se tagarela, já o mundo é ali, para mim, corno um jardim.

Grendel-a sOoL!!Como é agradável que existam palavras e sons; não são, palavras e sons, arco-íris e falsas pontes entre coisas eternamente separadas?

Toda a alma tem o seu mundo, diferente dos outros; para toda a alma, qualquer outra alma é um transmundo.

É entre as mais semelhantes que mente melhor a aparência; pois a brecha menor é a mais difícil de transpor.

Para mim - como haveria algo exterior a mim? Não existe o exterior! Mas esquecemos isso a cada palavra; como é agradável que o esqueçamos.

Não foram as coisas presenteadas com nomes e sons, para que o homem se recreie com elas? Falar é uma bela doidice: com ela o homem dança sobre todas as coisas.

Quão grata é toda a fala e toda a mentira dos sons! Com sons dança o nosso amor em coloridos arco-íris."

"Ó, Zaratustra", disseram, então, os animais, "para os que pensam como nós, as próprias coisas dançam: vêm e dão-se a mão e riem e fogem - e voltam.

Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser.

Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente constrói-se a mesma casa do ser. Tudo se separa, tudo volta a se encontrar; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser.

Em cada instante começa o ser; em torno de todo o ‘aqui’ rola a bola ‘acolá’. O meio está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade."

"Ó, farsantes e realejos!", retrucou Zaratustra, sorrindo de novo; "como conheceis bem o que devia cumprir-se em sete dias (...)."

Friedrich Nietzsche

sábado, maio 19, 2007

O Menino Flor

Paeonia_Neecii_by_ZeNeec-a sOoL!!
"Era uma vez um menininho bastante pequeno
que contrastava com a escola bastante grande.
Quando o menininho descobriu que podia ir à sua sala
caminhando pela porta da rua, ficou feliz.
A escola não parecia tão grande quanto antes.
Uma manhã, a professora disse:
- Hoje nós iremos fazer um desenho.
"Que bom!" - pensou o menininho.
Ele gostava de desenhar
leões, tigres, galinhas, vacas, trens e barcos...
Pegou a sua caixa de lápis-de-cor e começou a desenhar.
A professora então disse:
- Esperem, ainda não é hora de começar!
Ela esperou até que todos estivessem prontos.
- Agora, disse a professora, nós iremos desenhar flores.
E o menininho começou a desenhar bonitas flores
com seus lápis rosa, laranja e azul.
A professora disse:
- Esperem! Vou mostrar como fazer.

E a flor era vermelha com caule verde

- Assim, disse a professora, agora vocês podem começar.
O menininho olhou para a flor da professora,
então olhou para a sua flor.
Gostou mais da sua flor, mas não podia dizer isso...
Virou o papel e desenhou uma flor igual a da professora.

Era vermelha com caule verde.

Num outro dia, quando o menininho estava em aula ao ar livre,
a professora disse:
- Hoje nós iremos fazer alguma coisa com o barro.
- "Que bom!". Pensou o menininho.
Ele gostava de trabalhar com barro.
Podia fazer com ele todos os tipos de coisas:
elefantes, camundongos, carros e caminhões.
Começou a juntar e amassar a sua bola de barro.
Então, a professora disse:
- Esperem! Não é hora de começar!
Ela esperou até que todos estivessem prontos.
- Agora, disse a professora, nós iremos fazer um prato.
"Que bom!" - pensou o menininho.
Ele gostava de fazer pratos de todas as formas e tamanhos.

A professora disse:
- Esperem! Vou mostrar como se faz.
Assim, agora vocês podem começar.
E ela mostrou a todos como fazer um prato fundo.
O menininho olhou para o prato da professora,
olhou para o próprio prato e gostou mais do seu.
Ele gostava mais do seu prato do que o da sua professora.
Mas ele não podia dizer isso.
Ele amassou o seu barro numa grande bola novamente
e fez um prato fundo, igual ao da professora.

E muito cedo o menininho aprendeu a esperar
e a olhar e a fazer as coisas exatamente como a professora.
E muito cedo ele não fazia mais coisas por si próprio.
Então aconteceu que o menininho e sua família se mudaram
para outra casa, em outra cidade
e o menininho teve que ir para outra escola.
Essa escola era ainda maior que a primeira.
Ele tinha que subir grandes degraus até sua sala.

E no primeiro dia ele estava lá quando a professora disse:
- Hoje, nós vamos fazer um desenho.
"Que bom !" - pensou o menininho,
e esperou que a professora dissesse o que e como fazer.
Mas a professora não disse nada,
apenas andava pela sala.
Então foi até o menininho e disse:
- Você não quer desenhar ?
- Sim, disse o menininho, e o que é que nós vamos fazer?
- Eu não sei, até que você o faça, disse a professora.

- Como eu posso fazê-lo?
Perguntou o menininho.
- Da maneira que você gosta, disse a professora.
- E de que cor?
Perguntou o menininho.
- Se todo mundo fizer o mesmo desenho
e usar as mesmas cores,
como eu posso saber quem fez o quê?
E qual é o desenho de cada um?
- Eu não sei . . .
E então o menininho pegou o seu lápis
e começou a desenhar

uma flor vermelha com o caule verde."

Helen E. Buckley

sábado, maio 12, 2007

Labirinto em diagonal

LilyaCornelli-a sOoL!!

" (...) O curso da vida não é certamente a nossa obra exclusiva, mas o produto de dois fatores, a saber, a série dos acontecimentos e a das nossas decisões. Séries que sempre interagem e se modificam reciprocamente.

Além disso, há o fato de que, em ambas, o nosso horizonte é sempre bastante limitado, na medida em que não podemos predizer com muita antecipação as nossas decisões e muito menos prever os acontecimentos; na verdade, de ambos conhecemos com justeza apenas os acontecimentos e decisões atuais.

Sendo assim, enquanto o nosso alvo está longe, não podemos dirigir-nos diretamente para ele, mas só por aproximações e conjecturas, amiúde tendo de bordejar. Tudo o que conseguimos é tomar decisões sempre segundo a medida das circunstâncias presentes, na esperança de fazê-lo bem, para desse modo nos aproximarmos do alvo principal. Na maioria das vezes, portanto, os acontecimentos e as nossas intenções básicas são comparáveis a duas forças que agem em direções opostas, sendo a diagonal resultante o curso da nossa vida."

Arthur Schopenhauer

Por mais que te cante o corpo


Por mais que te cante o corpo lembra-te:

a vida é esse pássaro enlouquecido

que morre de encontro aos espelhos na ânsia de um nome.

Lembra-te: é preciso pagar os juros da dor.

Virão os frutos de todas as estações

e a música mínima que habita a folhagem,

soletrando, folha a folha, como um labirinto,

a escrita interminável nas pedras, nas árvores,

a escrita do mundo, multiplicando-se.

E vislumbrarás, entre as tuas noites,

as pequenas, humanas glórias,

o que poderá ter sido, nesse naufrágio da luz,

continuarás a alimentar esse pássaro

que floresce na sua noite:

o exílio, a alma que se esmaga na superfície dos espelhos,

eternamente devorada pelo tempo.



Maria Joao Cantinho

sexta-feira, maio 11, 2007

O Navio Negreiro - cantos IV, V, VI



GavinHellier-a sOoL!!(...)

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

(...)

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...

V

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?
Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão...

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
...Adeus, ó choça do monte,
...Adeus, palmeiras da fonte!...
...Adeus, amores... adeus!...

Corbis-a sOoL!!

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...

VI

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ...
Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

Castro Alves

terça-feira, maio 08, 2007

Revolta

FleurPerroquet-a sOoL!!

"Falarei pouco da infelicidade. Conheci-a o suficiente para saber o que ela é, e a impotência da filosofia diante dela. Quando sofremos demais, não podemos mais pensar; e, quando pensamos de novo, isso não nos impede de sofrer. No extremo da dor, não há mais que o grito e as lágrimas; e a única sabedoria é resignar-se a tal. Não gosto de filósofos que consolam.

Mas também não é verdade que a filosofia não serve para nada. Ela é feita tão-só de palavras, é verdade, e muda apenas estas, ou a ordem destas, a arrumação em nós das palavras e das imagens, nosso pensamento, o murmúrio confuso de nossa alma. As coisas não filosofam, e a filosofia as deixa tais como são. O silêncio dela as protege. Não somos Deus, e nosso discurso não passa de um discurso: produção e deslocamento de sentido, e não criação de ser. Mas também são as palavras que nos criam problemas, são as imagens que devemos dominar. O sofrimento, a morte não são problemas, a princípio, mas são fatos. Contra os quais o corpo sabe defender-se, e combate ou morre como pode. Os animais não necessitam de filosofia. A atrocidade é o que é, ponto final, e o pensamento não a altera em nada.

Salvo isto: ele torna a atrocidade presente mesmo quando ela não está, e, pela permanência em nós que lhe concede, força-nos a conviver com ela. A exceção pensada torna-se regra. Donde a existência para nós de nossa morte e, na ausência de todo e qualquer medo, a tortura continuada da angústia. É o custo da humanidade. A linguagem nos liberta do presente do ser e nos entrega de pés e mãos atados - escravos do tempo e prisioneiros de nós mesmos! - ao mundo fantasmagórico dos seres que não existem. A morte, os deuses, o tempo... A imaginação se desnorteia aqui, tornando-se humana. O mito brinca com as palavras: Cronos é filho de Verbo, e pai de todos os deuses. A linguagem e o tempo são nossos limites, que atormentamos, e que nos atormentam. Viver é um reino de sombras.

É aqui que a filosofia pode ser útil. Ela pouco pode contra a infelicidade; pode muito para a felicidade. Porque nossa exigência de homens não é viver, tão-somente, ou não sofrer, mas ser felizes. E o próprio pensamento que o permite torna-o difícil. Há tantos problemas a superar, tantos obstáculos em nós a vencer, tantas angústias... O fracasso é a inclinação. É preciso, pois, filosofar: o que torna isso possível - o pensamento - torna-o também necessário. A única felicidade é um pensamento feliz. A filosofia não transforma o mundo, mas é eficiente em seu devido lugar: porque não há problemas que não sejam de pensamento, nem angústias que não sejam imaginárias. Os mortos não sabem o que é a morte. A filosofia não transforma o mundo, nem pretende fazê-lo. Mas pode mudar a vida. Porque a vida está inteira no campo do discurso e do imaginário. Não há vida verdadeira senão sonhada.

A filosofia é a verdade desse sonho, e o sonho dessa verdade. Ela não impede de ser infeliz, pelo menos no caso dos aprendizes que somos. Não dispensa de sofrer. Mas pode nos ensinar a felicidade. Porque esta nunca é dada. A felicidade não se deve ao acaso nem é um presente do destino. Não está em um lugar, em um objeto ou em uma pessoa. Não é por exemplo, a ausência de infelicidade, sua simples negação. A infelicidade é um fato; a felicidade não. A infelicidade é um estado, a felicidade não. No limite: a felicidade não existe. É necessário portanto inventá-la.

FleurPerroquet

A felicidade não é uma coisa; é um pensamento. Não é um fato; é uma invenção. Não é um estado; é uma ação. Digamos a palavra: a felicidade é criação. Mas essa criação não cria nada fora dela mesma. É uma práxis, diria Aristóteles, e não uma poese. Viver é criar sem obra. A filosofia é a teoria dessa prática, que seria a própria felicidade, se pudéssemos ter êxito. Em todo caso podemos tentar; pois o próprio Spinoza, "o mais íntegro de todos os sábios", convida-nos a faze-lo e nos acompanha desse intento: "Embora o caminho que mostrei levar até lá pareça extremamente árduo, pelo menos podemos tomá-lo. Por certo, deve ser árduo o que é tão raramente encontrado. Como seria possível, se a salvação estivesse à mão e se pudéssemos percorrê-lo sem grande dificuldade, que fosse desprezado por quase todos? Mas tudo o que é belo é difícil, tanto quanto raro."

E a infelicidade nisso tudo?...

Está fora da filosofia. Esta nada pode contra aquela, talvez; mas tampouco aquela pode grande coisa contra esta. A morte não nega a vida; e as tempestades nada provam contra a navegação. Deixemos a infelicidade em seu estado de coisa. A atrocidade não é cotidiana; o pensamento, sim. Ou, se a atrocidade é cotidiana no mundo, não o é em minha vida. Não há nisso nem glória nem vergonha: não sou sempre eu quem sofre; sou sempre eu que devo pensar. Trabalhemos, pois, em bem pensar... A filosofia é esse trabalho. Para quê? Não temos opção: já que é necessário viver e pensar, antes bem do que mal. A salvação está no fim, se ela for possível; e nada perdemos, se não for. Não é uma aposta: não há cacife nem ganho, salvo o próprio jogo de viver. Não é uma religião: nenhum Deus nos ajudará, e qualquer morte é sem apelação. Mas é uma esperança, dirão, e uma nova cilada... Sei disso, mas ela se anularia em sua satisfação. A última esperança é não ter mais o que esperar. E a filosofia, a última cilada que nos separa da sabedoria. Vamos à felicidade pelo caminho mais curto; e quando lá chegarmos - não haverá mais caminho. Porque a beatitude é eterna, diz Spinoza, e não começa. Mas é preciso dizer no futuro o que só se pode viver no presente. Aqui. Agora. Para que um dia - hoje, quem sabe -, sem esperanças, sem pesares, a vida nos seja doce, leve, luminosa e bela, como um sonho de criança feliz perdida na plenitude do céu.

A atrocidade (pelo menos enquanto é a minha) não é cotidiana. Logo, a felicidade pode ser."

André Comte-Sponville

domingo, maio 06, 2007

Ecos do ão

DuarteMonteiro1-a sOoL!!
"Rebenta na Febem rebelião
um vem com um refém e um facão
a mãe aflita grita logo: não!
e gruda as mãos na grade do portão
aqui no caos total do cu do mundo cão
tal a pobreza, tal a podridão
que assim nosso destino e direção
são um enigma, uma interrogação

E, se nos cabe apenas decepção,
colapso, lapso, rapto, corrupção?
e mais desgraça, mais degradação?
concentração, má distribuição?
então a nossa contribuição
não é senão canção, consolação?
não haverá então mais salvação?
não, não, não, não, não...

Ecos do ão

Pra transcender a densa dimensão
da mágoa imensa então, somente então
passar além da dor da condição
de inferno e céu nossa contradição
nós temos que fazer com precisão
entre projeto e sonho a distinção
para sonhar enfim sem ilusão
o sonho luminoso da razão

E se nos cabe só humilhação
impossibilidade de ascensão
um sentimento de desilusão
e fantasias de compensação
e é só ruina, tudo em construção
e a vasta selva, só devastação
não haverá então mais solução?
não, não, não, não, não...

Ecos do ão...

Porque não somos só intuição
nem só pé-de-chinelo, pé no chão
nós temos violência sim e perversão
mas temos o talento e a invenção
desejos de beleza em profusão
idéias na cabeça, coração
a singeleza e a sofisticação
o choro, a bossa, o samba e o violão

Mas, se nós temos planos, e eles são
o fim da fome e da difamação
por que não pô-los logo em ação?
tal seja agora a inauguração
da nova nossa civilização
tão singular igual ao nosso ão
e sejam belos, livres, luminososos
os nossos sonhos de nação.

Ecos do ão...

Música de Lenine e Carlos Rennó