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Música Brasileira

"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Brasileiro e Humanista

MarceloS.Oliveira-a sOoL!!

“De fato como brasileiro eu simplesmente falaria contra internacionalização da Amazônia. Por mais que nossos governos não tenham o devido cuidado com esse patrimônio, ele é nosso. Como humanista, sentindo o risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, posso imaginar a sua internacionalização, como também de tudo o mais que tem importância para a humanidade.

Se a Amazônia, sob uma ética humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro... O petróleo é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a Amazônia para o nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou diminuir a extração de petróleo e subir ou não o seu preço.

Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado. Se a Amazônia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono, ou de um país. Queimar a Amazônia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas decisões arbitrárias dos especuladores globais. Não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação.

Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França. Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode deixar esse patrimônio cultural, como o patrimônio natural Amazônico, seja manipulado e destruído pelo gosto de um proprietário ou de um país. Não faz muito tempo, um milionário japonês, decidiu enterrar com ele, um quadro de um grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido internacionalizado.

Durante este encontro, as Nações Unidas estão realizando o Fórum do Milênio, mas alguns presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu acho que Nova York, como sede das Nações Unidas, deve ser internacionalizada. Pelo menos Manhatam deveria pertencer a toda a humanidade. Assim como Paris, Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com sua beleza específica, sua história do mundo, deveria pertencer ao mundo inteiro.

Se os EUA querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos também todos os arsenais nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas armas, provocando uma destruição milhares de vezes maior do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil.

Nos seus debates, os atuais candidatos à presidência dos EUA têm defendido a idéia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida. Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do Mundo tenha possibilidade de COMER e de ir à escola. Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece a Amazônia.

Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como um patrimônio da Humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar, que morram quando deveriam viver. Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo.

Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa!”

Cristovam Buarque (Senador, ex governador do Distrito Federal, ex Ministro da Educação/Brasil)

Ponto de orvalho

Nem se chega a saber como
um inusitado sorriso,
um volver de olhos doentes,
um caminhar indeciso e cego por entre as gentes,
chamam a si, aglutinam, essa dor que anda suspensa
(e é dor de toda a maneira)
como o vapor se condensa sobre núcleos de poeira.

É essa angústia latente boiando no ar parado
como um trovão iminente,
que em muda voz se pressente
num simples olhar trocado.

Essa angústia universal,
esse humano desespero,
revela-se num sinal,
numa ferida natural
que rói com lento exagero.

Não deita sangue nem pus,
não se mede nem se pesa,
não diz, não chora, não reza, não se explica
nem traduz.

A gente chega,
respira,
olha,
sorri,
cumprimenta,
fala
do frio que apoquenta
ou
do suor que transpira,
e pronto,
sem saber como,
inútil,
seco,
vazio,
cai na penumbra do rio,
emerge,
bóia,
soçobra,
fácil e desinteressado
como um papel que se dobra
por onde já foi dobrado.

António Gedeão

domingo, janeiro 29, 2006

Por não estarem distraídos

JoWhaley1-a sOoL!!"Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos."

Clarice Lispector

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Nem a rosa, nem o cravo...

TomTompson-a sOoL!! "As frases perdem seu sentido, as palavras perdem sua significação costumeira, como dizer das árvores e das flores, dos teus olhos e do mar, das canoas e do cais, das borboletas nas árvores, quando as crianças são assassinadas friamente pelos nazistas? Como falar da gratuita beleza dos campos e das cidades, quando as bestas soltas no mundo ainda destroem os campos e as cidades?

Já viste um loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os hitleristas e seus cães danados destruíram os trigais e os povos morrem de fome. Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão, da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o mar e teu rosto. Contra tudo que é a beleza cotidiana do homem, o nazifascismo se levantou, monstro medieval de torpe visão, de ávido apetite assassino.

Outros que falem, se quiserem, das árvores nas tardes agrestes, das rosas em coloridos variados, das flores simples e dos versos mais belos e mais tristes. Outros que falem as grandes palavras de amor para a bem-amada, outros que digam dos crepúsculos e das noites de estrelas. Não tenho palavras, não tenho frases, vejo as árvores, os pássaros e a tarde, vejo teus olhos, vejo o crepúsculo bordando a cidade.

Mas sobre todos esses quadros bóiam cadáveres de crianças que os nazis mataram, ao canto dos pássaros se mesclam os gritos dos velhos torturados nos campos de concentração, nos crepúsculos se fundem madrugadas de reféns fuzilados. E, quando a paisagem lembra o campo, o que eu vejo são os trigais destruídos ao passo das bestas hitleristas, os trigais que alimentavam antes as populações livres. Sobre toda a beleza paira a sombra da escravidão. É como uma nuvem inesperada num céu azul e límpido.

Como então encontrar palavras inocentes, doces palavras cariciosas, versos suaves e tristes? Perdi o sentido destas palavras, destas frases, elas me soam como uma traição neste momento. Mas sei todas as palavras de ódio, do ódio mais profundo e mais mortal.

Eles matam crianças e essa é a sua maneira de brincar o mais inocente dos brinquedos. Eles desonram a beleza das mulheres nos leitos imundos e essa é a sua maneira mais romântica de amar. Eles torturam os homens nos campos de concentração e essa é a sua maneira mais simples de construir o mundo. Eles invadiram as pátrias, escravizaram os povos, e esse é o ideal que levam no coração de lama.

Como então ficar de olhos fechados para tudo isto e falar, com as palavras de sempre, com as frases de ontem, sobre a paisagem e os pássaros, a tarde e os teus olhos? É impossível porque os monstros estão sobre o mundo soltos e vorazes, a boca escorrendo sangue, os olhos amarelos, na ambição de escravizar. Os monstros pardos, os monstros negros e os monstros verdes. Mas eu sei todas as palavras de ódio e essas, sim, têm um significado neste momento.

Houve um dia em que eu falei do amor e encontrei para ele os mais doces vocábulos, as frases mais trabalhadas. Hoje só o ódio pode fazer com que o amor perdure sobre o mundo. Só 0 ódio ao fascismo, mas um ódio mortal, um ódio sem perdão, um ódio que venha do coração e que nos tome todo, que se faça dono de todas as nossas palavras, que nos impeça de ver qualquer espetáculo - desde o crepúsculo aos olhos da amada - sem que junto a ele vejamos o perigo que os cerca.

Jamais as tardes seriam doces e jamais as madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas belas, nunca mais seria escrito um verso de amor. Sobre toda a beleza do mundo, sobre a farinha e o pão, sobre a pura água da fonte e sobre o mar, sobre teus olhos também, se debruçaria a desonra que é o nazifascismo, se eles tivessem conseguido dominar o mundo. Não restaria nenhuma parcela de beleza, a mais mínima.

Amanhã saberei de novo palavras doces e frases cariciosas. Hoje só sei palavras de ódio, palavras de morte.

Não encontrarás um cravo ou uma rosa, uma flor na minha literatura. Mas encontrarás um punhal ou um fuzil, encontrarás uma arma contra os inimigos da beleza, contra aqueles que amam as trevas e a desgraça, a lama e os esgotos, contra esses restos de podridão que sonharam esmagar a poesia, o amor e a liberdade!"

Jorge Amado in: Jornal Folha da Manhã em 22/04/1945

quinta-feira, janeiro 26, 2006

O anjo de pedra

"Não há dias em que você não se sente? Não sei!! Então... é tanto faz... Afinal, no vazio de não se sentir, nada faz diferença..."

AndrzejLech-a sOoL!!

Tinha os olhos abertos mas não via.
O corpo todo era a saudade
de alguém que o modelara e não sabia
que o tocara de maio e claridade.

Parava o seu gesto onde pára tudo:
no limiar das coisas por saber
- e ficara surdo e cego e mudo
para que tudo fosse grave no seu ser.

Eugénio de Andrade

sábado, janeiro 21, 2006

Especulações em torno da palavra homem


SteveMacCurry-a sOoL!!
Mas que coisa é homem,
que há sob o nome:
uma geografia?

Um ser metafísico?
uma fábula sem signo
ou desmonte?

Como pode o homem
sentir-se a si mesmo,
quando o mundo some?

Como vai o homem
junto de outro homem,
sem perder o nome?

E não perde o nome
e o sal que ele come
nada lhe acrescenta

SteveMacCurry-a sOoLnem lhe subtrai
da doação da pai?
Como se faz um homem ?

Apenas deitar,
copular, à espera
de que do abdômen

brote a flor do homem?
Como se fazer
a si mesmo, antes

de fazer o homem?
Fabricar o pai
e o pai
e outro pai

e um pai mais remoto
que o primeiro homem ?
Quanto vale o homem?

Menos, mais que o peso?
Hoje mais que ontem?
Vale menos, velho?

Vale menos, morto?
Menos um que outro,
se o valor do homem

é medida de homem?
Como morre o homem,
como começa a?

Sua morte é fome
que a si mesma come?
Morre a cada passo?

Quando dorme, morre?
Quando morre, morre?
A morte do homem?

Consemelha a goma
que ele masca, ponche
que ele sorve, sono

SteveMacCurry-a sOoL!!

que ele brinca, incerto
de estar perto, longe?
Morre, sonha o homem?

Por que morre o homem?
Campeia outra forma
de existir sem vida?

Fareja outra vida
não já repetida,
em doido horizonte?

Indaga outro homem?
Por que morte e homem
andam de mãos dadas

e são tão engraçadas
as horas do homem?
Mas que coisa é homem?

Tem medo de morte,
mata-se, sem medo?
Ou medo é que o mata

com punhal de prata,
laço de gravata,
pulo sobre a ponte?

SteveMacCurryKashimir-asOoL!! Por que vive o homem?
Quem o força a isso,
prisioneiro insonte?

Como vive o homem,
se é certo que vive?
Que oculta na fronte?

E por que não conta
seu todo segredo
mesmo em tom esconso?

Por que mente o homem?
Mente mente mente
desesperadamente?

Por que não se cala,
se a mentira fala,
em tudo que sente?

Por que chora o homem?
Que choro compensa
o mal de ser homem?

Mas que dor é homem?
Homem como pode
descobrir que dói?

Há alma no homem?
E quem pôs na alma
algo que a destrói?

Como sabe o homem
o que é sua alma
e o que é alma anônima?

SteveMacCurry-a sOoL Para que serve o homem?
Para estrumar flores,
para tecer contos?

Para servir o homem?
Para criar Deus?
Sabe Deus do homem?

E sabe o demônio?
Como quer o homem
ser destino, fonte?

Que milagre é o homem?
Que sonho, que sombra?
Mas existe o homem?

Carlos Drummond de Andrade

A estrela

AugustoPeixoto-a sOoL!!Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.

Manuel Bandeira

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Apenas dois...

JosephHolmes-a sOoL!!

Dois...
Apenas dois.
Dois seres...
Dois objetos patéticos.
Cursos paralelos
Frente a frente...
...Sempre...
...A se olharem...
Pensar talvez:
“Paralelos que se encontram no infinito...”
No entanto sós por enquanto.
Eternamente dois apenas.

Pablo Neruda

terça-feira, janeiro 17, 2006

Ostra feliz (é feliz! mas...) não faz pérolas

Sab34inOlhares-a sOoL!!
“Ostras são moluscos, animais sem esqueleto, macias, que são as delícias dos gastrônomos. Podem ser comidas cruas, com pingos de limão, com arroz, paellas, sopas. Sem defesas – são animais mansos – seriam uma presa fácil dos predadores. Para que isso não acontecesse a sua sabedoria as ensinou a fazer casas, conchas duras, dentro das quais vivem.

Pois havia num fundo de mar uma colônia de ostras, muitas ostras. Eram ostras felizes. Sabia-se que eram ostra felizes porque de dentro de suas conchas saía uma delicada melodia, música aquática, como se fosse um canto gregoriano, todas cantando a mesma música. Com uma exceção: de uma ostra solitária que fazia um solo solitário. Diferente da alegre música aquática, ela cantava um canto muito triste. As ostras felizes se riam dela e diziam: “Ela não sai da sua depressão...”

Não era depressão. Era dor. Pois um grão de areia havia entrado dentro da sua carne e doía, doía, doía. E ela não tinha jeito de se livrar dele, do grão de areia. Mas era possível livrar-se da dor. O seu corpo sabia que, para se livrar da dor que o grão de areia lhe provocava, em virtude de suas aspereza, arestas e pontas, bastava envolvê-lo com uma substância lisa, brilhante e redonda. Assim, enquanto cantava seu canto triste, o seu corpo fazia o seu trabalho – por causa da dor que o grão de areia lhe causava.

Um dia passou por ali um pescador com o seu barco. Lançou a sua rede e toda a colônia de ostras, inclusive a sofredora, foi pescada. O pescador se alegrou, levou-as para a sua casa e sua mulher fez uma deliciosa sopa de ostras. Deliciando-se com as ostras de repente seus dentes bateram numa objeto duro que estava dentro da ostra. Ele tomou-o em suas mãos e deu uma gargalhada de felicidade: era uma pérola, uma linda pérola. Apenas a ostra sofredora fizera uma pérola. Ele tomou a pérola e deu-a de presente para a sua esposa. Ela ficou muito feliz...

Ostra feliz não faz pérolas. Isso vale para as ostras e vale para nós, seres humanos. As pessoas que se imaginam felizes simplesmente se dedicam a gozar a vida. E fazem bem. Mas as pessoas que sofrem, elas têm de produzir pérolas para poder viver. Assim é a vida dos artistas, dos educadores, dos profetas... Sofrimento que faz pérola não precisa ser sofrimento físico. Raramente é sofrimento físico. Na maioria das vezes são dores na alma. (...)"

Rubem Alves

Mutualismo

AnnetteFournet-a sOoL!!Dentro do homem
mora um anjo
e uma fera

O anjo guarda a fera
tão bem escondida
como a fera guarda
o anjo.

Quando o anjo se ilude,
quem ama é a fera.
Quando a fera se fere
quem se machuca é o anjo.

Na constância do verbo
quem padece é o homem
por causa do anjo,
por causa da fera.

Chico Poeta

domingo, janeiro 15, 2006

A cara do Brasil

Bart-a sOoL!!
Eu estava esparramado na rede
jeca urbanóide de papo pro ar
me bateu a pergunta, meio à esmo:
Na verdade, o Brasil o que será?

O Brasil é o homem que tem sede
ou quem vive da seca do sertão?
Ou será que o Brasil dos dois é o mesmo
o que vai é o que vem na contra-mão?

O Brasil é um caboclo sem dinheiro
procurando o doutor nalgum lugar
ou será o professor Darcy Ribeiro
que fugiu do hospital pra se tratar?

A gente é torto igual Garrincha e Aleijadinho.
Ninguém precisa consertar
Se não der certo a gente se virar sozinho,
decerto então nunca vai dar.

O Brasil é o que tem talher de prata
ou aquele que só come com a mão?
Ou será que o Brasil é o que não come...
O Brasil gordo na contradição?
O Brasil que bate tambor de lata
ou que bate carteira na estação?
O Brasil é o lixo que consome
ou tem nele o maná da criação?

Brasil Mauro Silva, Dunga e Zinho
que é o Brasil zero a zero e campeão
ou o Brasil que parou pelo caminho:
Zico, Sócrates, Júnior e Falcão.

O Brasil é uma foto do Betinho
ou um vídeo da Favela Naval?
São os Trens da Alegria de Brasília
ou os trens de subúrbio da Central?
Brasil-globo de Roberto Marinho?
Brasil-bairro: garotos-Candeal?
Quem vê, do Vidigal, o mar e as ilhas
ou quem das ilhas vê o Vidigal?
O Brasil alagado, palafita?
Seco açude sangrado, chapadão?
Ou será que é uma Avenida Paulista?
Qual a cara da cara da nação?

Celso Viáfora e Vicente Barreto

Apetite sem Esperança

Olhares-a sOoL!!
Mãe eu tô com fome
eu dizia eu gritava eu mugia
minha vó zangada respondia
você não está morrendo e nem tem fome
Você tem é apetite
Você sabe que vai comer, aonde comer, o quê vai comer.
Fome não! A fome, minha neta,
a fome, meu irmão,
a fome, minha criança,
é um apetite sem esperança.

Quando há certeza de cereais, toalhas americanas,
guardanapos e alegrias da coca-colândia
não há fome de verdade.

Minha vó já dizia pra mim um futuro de Brasil.
Minha vó nem viu edifício crescer no lugar de pão
no lugar de trigo
nem viu criança com infância de semáforo
vendendo mariola barata, criança que mata
porque seu quintal tá sempre no vermelho
criança cujo ralado de joelho
dói menos do que o não morar, não existir, não contar
com a fome tenaz
Não há tenaz na escola
há só a cola de cheirar a dor doída
de um monstro estômago a roncar
um animal doído dentro do corpo a uivar
todo dia, sem boa vista, sem quinta zoológica onde morar.

Com a fome das crianças brasileiras
forra-se a mesa, arma-se o banquete
dos que sempre tiveram apenas apetite.

A faminta criança foi apenas o álibi, o cardápio, o convite.
Desmamada ela cresce procurando o peito da pátria amada
uma banana, uma manga, uma feijoada
e a mãe pátria diz nada.

Tem ela apenas o horror, o descalor, a calçada
um ódio a todos os tênis dos meninos nutridos
um ódio a mochilas, a saudáveis barrigas
com contínuo furor de assaltar os relógios
um deter o tempo que é o seu verdadeiro balão
um cai-cai balão que só cai à mão armada.

A fome gera a cilada de uma pátria de não irmãos.

A gente podia ter gripe, asma, catapora, bronquite.

A gente podia ter apetite mas fome não.

Minha vó bem que dizia sem errança:
fome é um apetite sem esperança.

Elisa Lucinda

sábado, janeiro 14, 2006

Embriaga-te

CarolGula-a sOoL!!
Deve- se estar sempre bêbado.
É a única questão.
A fim de não se sentir o fardo horrível do tempo,
que parte tuas espáduas e te dobra sobre a terra.
É preciso te embriagares sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude?
A teu gosto, mas embriaga-te.
E se alguma vez sobre os degraus de um palácio,
sobre a verde relva de uma vala,
na sombria solidão de teu quarto,
tu te encontrares com a embriaguez já minorada ou finda,
peça ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio,
a tudo aquilo que gira, a tudo aquilo que voa,
a tudo aquilo que canta, a tudo aquilo que fala, a tudo aquilo que geme.
Pergunte que horas são.
E o vento, a vaga, a estrela, o pássaro,
o relógio, te responderão.
É hora de se embriagar !!!
Para não ser como os escravos martirizados pelo tempo, embriaga-te.
Embriaga-te sem cessar.
De vinho, de poesia ou de virtude.
A teu gosto.

Charles Baudelaire

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Tão longe

GustavoCastilla-a sOoL!!
Você está tão longe
que o rastro do caminho se desfaz
sem saber que em minha mente
todo sonho é sonho capaz
mesmo que indiferente
mesmo que ausente
mesmo que já predestinado ao fim,
ao silêncio e ao tormento
de saber que jamais será semente
daquele desejo capturado
do lugar mais almejado
e que ninguém pôde tocar
até o instante exato
reservado
aonde o sonho se fez apenas um sonho
levando um pouco de mim
sem saber o que é
o que foi em reticências sem fim
e continuo com pressa
como se tudo daqui a pouco
apenas seja pó sem paz...dispensando o tanto faz
no sonho aonde todo sonho é capaz...

Cinthia Souza Kaneyuki

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Livro de Horas

Aqui
diante de mim,
eu,
pecador,
me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau que vão ao leme
da nau nesta deriva em que vou.

Me confesso possesso das virtudes teologais,
que são três,e dos pecados mortais,
que são sete, quando a terra não repete que são mais.

Me confesso o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo andanças do mesmo todo.

Me confesso de ser charco e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco que atira setas
acima e abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído do buraco
mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu,
tal e qual como vim para dizer
que sou eu aqui,
diante
de
mim!

Miguel Torga

domingo, janeiro 08, 2006

Tudo é transitório

"É verdade, tudo é transitório – tudo e todos, seja uma criança que geramos, ou o grande amor do qual nasceu a criança, seja uma grande idéia – tudo é igualmente transitório. A vida humana dura setenta anos, talvez oitenta, e se é uma boa vida, vale a pena vivê-la. Um pensamento dura talvez sete segundos, mas, se é um bom pensamento, contém uma verdade. Mas tanto a grande idéia é transitória como a criança e o grande amor. Eles são transitórios. Tudo é transitório.

Por outro lado, todavia, tudo é eterno. Mais que isso: faz-se eterno. Não podemos evitá-lo. Se tivermos iniciado qualquer coisa, a eternidade se apossa dela. Mas temos de assumir a responsabilidade por aquilo que tivemos preferido realizar, aquilo que tivermos escolhido para começar a ser parte do passado, que tivermos selecionado para ser eterno!

Tudo é escrito no arquivo eterno – nossa vida toda, todas as nossas criações e ações, encontros e experiências, todos os nossos amores e sofrimentos. Tudo isso está contido e permanece no arquivo eterno. A realidade não é um manuscrito redigido em um código que devemos decifrar, como ensinou o grande filósofo existencialista Karl Jaspers. Não, a realidade é, antes, um documento que devemos ditar.”

Viktor Frankl in: http://plural.motime.com .

sábado, janeiro 07, 2006

Sobre ser breve

JeffreyConley-a sOoL!!"Quando se escreve é não somente para ser compreendido, mas também para não o ser. Um livro não fica diminuído pelo fato de um indivíduo qualquer o achar obscuro: ... As regras delicadas de um estilo ... são feitas para afastar, para manter a distância, para condenar o acesso de uma obra; para impedir alguns de compreender, e para abrir o ouvido aos outros...

Quanto a mim, digo-o aqui para nós, não permitirei nem à minha ignorância nem à minha vivacidade que me impeçam de vos ver claramente, ó meus amigos: ... Porque me sirvo dos problemas profundos como se fossem banhos frios: mal entro, saio logo. Este método, há-de dizer-se, impede de descer o suficiente, de ir ao fundo? trata-se de superstição de hidrófobo ... falam sem experiência. Ah! se soubessem como o frio torna as pessoas ágeis! ... E de resto, diga-se de passagem: acreditais realmente que uma coisa se mantenha obscura porque não fizemos mais do que aflorá-la, deitar-lhe um olhar de passagem, lançar-lhe uma vista de olhos de passagem? ... Há pelo menos certas verdades ... que só é possível apanhá-las de surpresa: é surpreender ou largar... Enfim a minha exigência tem outra vantagem: ... sou forçado a ser muitas vezes rápido para que me compreendam ainda mais rapidamente.

Eis o que diz respeito à minha brevidade; já o mesmo não sucede tão brilhantemente com a minha ignorância, que não dissimulo. ... O que vem a ser necessário para que um espírito se alimente? Nenhuma fórmula pode responder à pergunta, mas ... Não é a gordura que um bom dançarino pretende obter da sua alimentação ... e não conheço nada que um filósofo goste mais do que ser um bom dançarino".

Friedrich W. Nietzsche

Valsinha

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar

Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar

E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou
E foram tantos beijos loucos
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz

Chico Buarque de Holanda e Vinícius de Moraes

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Falas de Civilização

WendyCook-a sOoL!!
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as coisas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes:
eis tudo.
Se as coisas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

Alberto Caeiro

terça-feira, janeiro 03, 2006

Basta!!

Pat_OHara-a sOoL!!
"Em abril de 1994, o São Francisco Chronicle referiu-se ao subcomandante Marcos, voz dos zapatistas revolucionários em Chiapas, México, dizendo que tinha trabalhado num restaurante de São Francisco, mas que havia sido despedido por ser gay. A imprensa governamental do México lançou-se no ar com a seguinte manchete: 'Um maricas revolucionário!'

Os zapatistas responderam com o seguinte comunicado:

Marcos é um gay em São Francisco, um negro na África do Sul, um asiático na Europa, um chicano em San Isidro, um anarquista na Espanha, um palestino em Israel, um índio maia nas ruas de San Cristóbal, um judeu na Alemanha, um insurrecto no Ministério da Defesa, um comunista no pé da Guerra Fria, um artista sem galeria nem portifólios, um pacifista n Bósnia, uma dona de casa só num sábado à noite em qualquer bairro do México, um repórter escrevendo histórias que enchem as páginas negras, uma mulher solteira no metrô às dez da noite, um camponês sem terra, um trabalhador desempregado, um estudante fracassado, um dissidente no meio da economia de livre-mercado, um escritor sem livros nem leitores, e, sobretudo, um zapatista nas montanhas do sudeste do México.

Assim, é Marcos, tão humano como qualquer outro neste mundo.

Marcos é todas as pessoas exploradas, marginalizadas, as minorias oprimidas, resistindo e dizendo: basta!

El Despertador Mexicano"

Editora da Tribo - 2003