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Música Brasileira

"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

sábado, dezembro 03, 2011

A Paixão Segundo G. H. trecho II


(...)  Neste instante, agora, uma dúvida me surpreende. Deus, ou o que És chamado: eu peço agora uma ajuda: mas que agora me ajude não obscuramente como me és, mas desta vez claramente e em campo aberto.

Pois preciso saber exatamente isto: estou sentindo o que estou sentindo, ou estou sentindo o que eu queria sentir? ou estou sentindo o que precisaria sentir?

Porque não quero mais sequer a concretização de um ideal, quero é ser apenas uma semente. Mesmo que depois, dessa semente, nasçam de novo os ideais, ou os verdadeiros, que são um nascimento de caminho, ou os falsos, que são os acréscimos. Estaria eu sentindo o que desejaria sentir? Pois a diferença de um milímetro é enorme, e este epoaço de um milímetro pode me salvar pela verdade, ou de novo me fazer perder tudo o que vi. É perigoso. Os homens elogiam muito o que sentem. O que é tão perigoso como execrar o que se sente.

Eu oferecera meu inferno ao Deus. E, minha crueldade, meu amor, minha crueldade parara de súbito. E de súbito aquele mesmo deserto era o esboço ainda vago do que se chamou paraíso. A umidade de um paraíso. Não outra coisa, mas aquele mesmo deserto. E eu estava surpreendida como se é surpreendido por uma luz que vem do nada.

Entendia eu que aquilo que eu experimentara, aquele núcleo de rapacidade infernal, era o que se chama de amor? Mas - amor neutro?

Amor neutro. O neutro soprava. Eu estava atingindo o que havia procurado a vida toda: aquilo que é a identidade mais última e que eu havia chamado de inexpressivo. Fora isso o que sempre estivera nos meus olhos no retrato: uma alegria inexpressiva, um prazer que não sabe que é prazer - um prazer delicado demais para a minha grossa humanidade que sempre fora feita de conceitos grossos. (...)


Clarice Lispector

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