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Música Brasileira

"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

quinta-feira, dezembro 30, 2010

E por vezes...

WhereFoodIsFreeby-pahness-asOoL!!E por vezes
as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos

E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes
sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira

terça-feira, dezembro 28, 2010

Suicídio

Black_Lung_by_negateven- a sOoL!!(...) "Andava com mania de suicídio e com crises de depressão aguda; não suportava ajuntamentos perto de mim e, acima de tudo, não tolerava entrar em fila comprida pra esperar seja lá o que fosse. E é nisto que toda a sociedade está se transformando: em longas filas à espera de alguma coisa. Tentei me matar com gás e não consegui. Mas tinha outro problema. Levantar da cama. Sempre tive ódio disso. Vivia afirmando: "As duas maiores invenções da humanidade foram a cama e a bomba atômica; não saindo da primeira, a gente se salva, e, soltando a segunda, se acaba com tudo". Acharam que estava louco. Brincadeira de criança, é só disso que essa gente entende: brincadeira de criança - passam da placenta pro túmulo sem nem se abalar com este horror que é a vida.

Sim, eu odiava ter que me levantar da cama de manhã. Significava que a vida ia recomeçar e depois que se passa a noite inteira dormindo cria-se uma espécie de intimidade especial que fica muito difícil de abrir mão. Sempre fui solitário. Você vai me desculpar, creio que não regulo bem da cabeça, mas a verdade é que, se não fosse por uma que outra trepadinha legal, não me faria a mínima diferença se todas as pessoas do mundo morressem. É, sei que isso não é uma atitude simpática. Mas ficaria todo refestelado aqui dentro do meu caracol. Afinal de contas, foram essas pessoas que me tornaram infeliz." (...)

Charles Bukowski

quarta-feira, dezembro 22, 2010

A Poesia

Poetry_by_MirnaAleric-a sOoL!! Por que tocas meu peito novamente?
Chegas silenciosa, secreta, armada,
como os guerreiros a uma cidade adormecida;
queimas minha língua com teus lábios, polvo,
e despertas os furores, os gozos,
e esta angústia sem fim
que acende o que toca
e engendra em cada coisa
uma avidez sombria.
O mundo cede e se desmorona
como metal no fogo.
Entre minhas ruínas me levanto,
só, desnudo, despojado,
sobre a rocha imensa do silêncio,
como um solitário combatente
contra invisíveis hostes.
Verdade abrasadora,
para onde me impeles?
Não quero tua verdade,
tua insensata pergunta.
Aonde vai esta luta estéril?
Não é o homem criatura capaz de conter-te,
avidez que só na sede se sacia,
chama que todos os lábios consome,
espírito que não vive em forma alguma
mas faz arder todas as formas
com um secreto fogo indestrutível.


Mas insistes, lágrima escarnecida,
e alças em mim teu império desolado.
Sobes do mais profundo de mim,
desde o centro inominável de meu ser,
exército, maré.
Cresces, tua sede me afoga,
expulsando, tirânica,
aquilo que não cede
a tua espada frenética.
Já somente tu me habitas,
tu, sem nome, furiosa substância,
avidez subterrânea, delirante.
Solitude_by_Hittano- a sOoL!!
Golpeiam meu peito teus fantasmas,
despertas com meu tato,
gelas minha fronte
e fazes proféticos meus olhos.
Percebo o mundo e te toco,
substância intocável,
unidade de minha alma e de meu corpo,
e contemplo o combate que combato
e minhas bodas de terra.
Nuveiam meus olhos imagens opostas,
e às mesmas imagens
outras, mais profundas, as negam,
ardente balbucio,
águas que afogam uma água mais oculta e densa.
Em sua úmida treva vida e morte,
quietude e movimento, são o mesmo.
Insiste, vencedora,
porque tão somente existo porque existes,
e minha boca e minha língua se formaram
para dizer tão somente tua existência
e tuas secretas sílabas, palavra
impalpável e despótica,
substância de minha alma.
És tão somente um sonho,
mas em ti sonha o mundo
e sua mudez fala com tuas palavras.
Roço ao tocar teu peito
a elétrica fronteira da vida,
a treva de sangue
onde pactua a boca cruel e enamorada,
ávida ainda de destruir o que ama
e reviver o que destrói,
com o mundo, impassível
e sempre idêntico a si mesmo,
porque não se detém de forma alguma
nem se demora sobre o que engendra.
Leva-me, solitária,
leva-me entre os sonhos,
leva-me, mãe minha,
me desperta do todo,
faz-me sonhar teu sonho,
unta meus olhos com óleo,
para que, ao conhecer-te, eu possa conhecer-me.

Octavio Paz - Tradução de: Cleto de Assis

sábado, dezembro 18, 2010

Alegria e Tristeza

Bubble_by_JuliBrightside-a sOoL!!"Freud disse que são duas as fomes que moram no corpo. A primeira fome é a fome de conhecer o mundo em que vivemos. Queremos conhecer o mundo para sobreviver. Se não tivéssemos conhecimento do mundo à nossa volta saltaríamos pelas janelas dos edifícios, ignorando a força de gravidade e poríamos a mão no fogo, por não saber que o fogo queima.

A segunda fome é a fome do prazer. Tudo o que vive busca o prazer. O melhor exemplo dessa fome é o desejo do prazer sexual. Temos fome de sexo porque é gostoso. Se não fosse gostoso ninguém o procuraria e, como conseqüência, a raça humana acabaria. O desejo do prazer seduz.

Gostaria de poder ter tido uma conversinha com ele sobre as fomes, porque eu acredito que há uma terceira: a fome de alegria.

Antigamente eu pensava que prazer e alegria eram a mesma coisa. Não são. É possível ter um prazer triste. A amante de Tomás, da Insustentável Leveza do Ser, se lamentava: “Não quero prazer, quero alegria!”

As diferenças. Para haver prazer é preciso primeiro que haja um objeto que dê prazer: um caqui, uma taça de vinho, uma pessoa a quem beijar. Mas a fome de prazer logo se satisfaz. Quantos caquis conseguimos comer? Quantas taças de vinho conseguimos beber? Quantos beijos conseguimos suportar? Chega um momento em que se diz: “ Não quero mais. Não tenho mais fome de prazer...”

A fome de alegria é diferente. Primeiro, ela não precisa de um objeto. Por vezes basta uma memória. Fico alegre só de pensar num momento de felicidade que já passou. E em segundo lugar, a fome de alegria jamais diz “Chega de alegria. Não quero mais...” A fome de alegria é insaciável.

Bernardo Soares disse que não vemos o que vemos; vemos o que somos. Se estamos alegres nossa alegria se projeta sobre o mundo e ele fica alegre, brincalhão. Acho que Alberto Caeiro estava alegre ao escrever esse poema: "As bolas de sabão que esta criança se entretém a largar de uma palhinha são translucidamente uma filosofia toda. Claras, inúteis, passageiras, amigas dos olhos, são aquilo que são... Algumas mal se vêem no ar lúcido. São como a brisa que passa...E que só sabemos que passa porque qualquer cousa se aligeira em nós...”

A alegria não é um estado constante – bolas de sabão. Ela acontece, subitamente. Guimarães Rosa disse que a alegria, só em raros momentos de distração. Não se sabe o que fazer para produzi-la. Mas basta que ela brilhe de vez em quando para que o mundo fique leve e luminoso. Quando se tem a alegria a gente diz: “ Por esse momento de alegria valeu a pena o universo ter sido criado.”

Fui terapeuta por vários anos. Ouvi os sofrimentos de muitas pessoas, cada um de um jeito. Mas por detrás de todas as queixas havia um único desejo: alegria. Quem tem alegria está em paz com o universo, sente que a vida faz sentido.

Norman Brown observou que perdemos a alegria por haver perdido a simplicidade de viver que há nos animais. Minha cadela Lola está sempre alegre, por quase nada. Sei disso porque ela sorri à toa. Sorri com o rabo.

Mas de vez em quando, por razões que não se entende bem, a luz da alegria se apaga. O mundo inteiro fica sombrio e pesado. Vem a tristeza. As linhas do rosto ficam verticais, dominadas pelas forças do peso que fazem afundar. Os sentidos se tornam indiferentes a tudo. O mundo se torna uma pasta pegajosa e escura. É a depressão. O que o deprimido deseja é perder a consciência de tudo, para parar de sofrer. E vem o desejo do grande sono sem retorno.

Antigamente, sem saber o que fazer, os médicos prescreviam viagens, achando que cenários novos seriam uma boa distração da tristeza. Eles não sabiam que é inútil viajar para outros lugares se não conseguimos desembarcar de nós mesmos. Os tolos tentam consolar. Argumentam apontando para as razões para se estar alegre: o mundo é tão bonito... Isso só contribui para aumentar a tristeza. As músicas doem. Os poemas fazem chorar. A TV irrita. Mas o mais insuportável de tudo são os risos alegres dos outros que mostram que o deprimido está num purgatório do qual não vê saída. Nada vale a pena.

E uma sensação física estranha faz morada no peito, como se um polvo o apertasse. Ou esse aperto seria produzido por um vácuo interior? É Thanatos fazendo o seu trabalho. Por que quando a alegria se vai ela entra...

Os médicos dizem que a alegria e a depressão são as formas sensíveis que tomam os equilíbrios e os desequilíbrios da química que controla o corpo. Que coisa mais curiosa: que a alegria e a tristeza sejam máscaras da química! O corpo é muito misterioso...

Aí, de repente, sem se anunciar, ao acordar de manhã, percebe-se que o mundo está de novo colorido e cheio de bolhas translúcidas de sabão... A alegria voltou!"

Rubem Alves

quarta-feira, dezembro 15, 2010

Jesus

mirror_mirror_CSnyder-a sOoL!!"A casa de José, o carpinteiro, em Nazaré, ficava à margem do caminho que leva a Tiberíades. Pequena e humilde, mais humilde parecia, ainda, pela ancianidade, e por não ser possível ao dono reconstruí-la. Edificada por Jacó, primogênito de Matran, tornara-se, por morte deste, propriedade do esposo de Maria, filha de Ana, da casa de Davi. E como o carpinteiro já se encontrasse velho e alquebrado de forças, ia deixando que o casebre se desmoronasse, açoitado pelos grandes ventos que sopravam no verão, das bandas do golfo de Caifa, e no inverno, da alta cordilheira que orna o país de Sichen. Sem cercas que a defendessem, era a casa rodeada de limoeiros, que embalsamavam o ar, e que a afogavam, com as suas frondes de um verde escuro, como punhados de manjericão em torno de uma rosa fanada.

Era à sombra de um desses limoeiros que José trabalhava, quando fazia bom tempo, manejando, trêmulo, o seu serrote e a plaina primitiva. E era sob a copa de todos os outros que brincavam, a manhã toda, e a tarde inteira, as crianças das casas vizinhas. Atraídas para ali pela frescura do local, vinham elas, isoladamente, ou duas a duas, ou três a três, com o seu perfil judaico, os olhos muito vivos e chegados um ao outro, para as correrias habituais. Trazia-as, muitas vezes, João, filho de Zacarias, antigo sacerdote do Templo, em Jerusalém. O senhor, entre elas, da casa e dos limoeiros, era, porém, Jesus, filho do carpinteiro, mais moço do que João quase um ano, e que era ainda seu parente, pois que Maria, esposa de José, e Isabel, esposa do velho sacerdote, eram primas e, apesar da diferença de idade, amigas e confidentes.

As duas famílias, a de Zacarias como a do carpinteiro, traziam no espírito, constantemente, duas preocupações. Segundo a palavra dos Profetas, o povo de Israel teria de cair sob o jugo do estrangeiro, do qual o livraria, no entanto, um grande Rei, que viria disfarçadamente à terra, com o sangue de Davi. A primeira parte das profecias estava cumprida. Os sucessores dos Macabeus haviam ateado a guerra civil na Judéia, e invocado, em certo o auxílio dos romanos, que tinham escolhido entre eles um rei, de nome Herodes, o qual reinava em Jerusalém. E a outra, a mais grave e difícil, parecia, agora, em via de realização.

Efetivamente, nove anos antes, achando-se Zacarias sozinho no Templo, em Jerusalém, incensando o altar, ouvira um ruído, que lhe parecera o de um grande pássaro em vôo. Volvera, lento, o rosto, e estacara, surpreso. Diante dele, vestido de uma túnica diáfana, e que parecia feita com o fumo do turíbulo, estava um mancebo de fisionomia resplandecente, de cujas espáduas saíam grandes asas, e que lhe dissera, em palavras sem mistérios, que sua esposa, Isabel, lhe daria, dentro de alguns meses, um filho varão. Dissera isto, e desaparecera.

Suspeitando dos próprios olhos e dos próprios ouvidos, duvidava o sacerdote do próprio entendimento. Se a esposa, na mocidade, não lhe dera um filho, como lho daria, agora, quando os dois, ele e ela, já se sentiam velhos? Que fazer, pois, naquela emergência? Narrar o sucedido? Contar à mulher, e aos íntimos, a ocorrência do Templo? Melhor seria, talvez, não pecar pela palavra, quem já pecava, incrédulo, pelo pensamento. E desse dia em diante, aguardando os acontecimentos de cada hora, os seus lábios se selaram para o mundo, enquanto a sua alma se descerrava, inteira, para os olhos de Deus.

Semanas depois, o mesmo Enviado aparecia, belo e fulgurante, na casa do carpinteiro, em Nazaré. Levava àquele outro lar uma notícia idêntica. Maria, esposa de José, seria mãe, e o seu filho, neto de Reis, seria o Rei da Judéia.

De acordo com o anunciado, Isabel tivera, em verdade, um filho, que tomou o nome de João. E Maria concebera outro, que era, agora, essa triste criança, de seis anos, sob cujos olhos, de uma estranha doçura, as outras vinham, de longe, brincar à sombra cheirosa dos limoeiros.

Desde o nascimento do menino, em Belém, quando iam àquela cidade para serem recenseados por ordem de Augusto, o carpinteiro e a esposa se haviam convencido dos altos destinos do filho. Daquele infante dependia, desde aquela hora, a sorte do Povo de Deus. Daí os cuidados de que 0 rodeavam, a cautela com que o vigiavam dia e noite, o susto com que acompanhavam as suas menores enfermidades. Naquele pequenito moreno, de olhos claros e fisionomia meiga, estava, não apenas o filho único, mas o Rei; não unicamente o rebento miraculoso de um casal que ia desaparecendo sem prole, mas o Salvador de uma raça, prometido pelas profecias do fundo remoto dos séculos.

Jesus havia nascido, entretanto, tão alegre como os outros meninos de Nazaré. Ao se lhe enrijar o pequeno corpo, de linhas modelares e puras, procurara correr, como os outros, e, como os outros, subir às árvores, roubar o ninho aos pássaros, ou banhar-se no lago, quando a família ia a Genezaré ou a Tiberíades. Mal, porém, tentava uma dessas distrações infantis, a mãe acorria aflita, ou acorria o pai, preocupado, detendo-lhe o gesto ou o desejo. E essa diferença de tratamento acordava-lhe dúvidas no espírito e no coração. Por que, sendo o mundo tão vasto, e a vida tão boa, só lhe não cabia, a ele, a alegria de ser livre como as crianças? Aquelas ondas cariciosas do lago, e aqueles ninhos de rouxinol dos olivais, teriam sido feitos unicamente para Mateus, filho de Marta, para Barnabé, filho de Manassés, para Eleazer, filho de Josué, ou, mesmo, para João, seu primo, tão violento que só procurava brinquedos de guerra, em que sempre saía vencedor? Por que, ainda, a curiosidade de toda a gente, em torno da sua pessoa: 0 sorriso de zombaria de uns, ao apontá-lo de passagem, e o respeito comovido de outros, alguns dos quais chegavam, até, a ajoelhar na poeira dos caminhos para beijar-lhe, chorando, a fímbria grosseira da túnica?

Sob os limoeiros copados, cujas ramas, aqui e ali, roçavam o chão, as crianças brincavam, correndo em algazarra, simulando combates de judeus e romanos. Por cima das ramagens, o céu era todo azul e ouro, e uma brisa fresca soprava, como uma carícia, das bandas do lago. Balouçado por ela, o limoal escrevia em hebraico, aqui e ali, no solo pedregoso, com letras de luz abertas na sombra, pequenos poemas misteriosos. Tudo era, em torno, festivo e jovial. As próprias aves, tontas de luz, cantavam mais alto.

Sentado junto ao muro limoso de um poço, Jesus, ele só, estava triste.

— Pai — havia pedido, momentos antes, ao carpinteiro —, deixa-me brincar com os outros!

— Não, meu filho; não podes, — respondera, paternal, o ancião, passando a mão trêmula e rude pelos seus cabelos castanhos. — E se caísses, em uma dessas correrias, que seria de nós, e do teu Povo?

Aquelas palavras eram, para ele, um mistério. Que significavam elas? Que Povo era esse, que era seu, e que ele não conhecia?

Os seus olhos, doces, e mansos, encheram-se de sombra. Uma lágrima correu, lenta e límpida, parando aqui e ali, pela sua face morena, vindo deter-se ao canto da boca miúda, pondo, nela, um desagradável gosto de sal.

Jesus de Nazaré começava a sofrer, nesse dia, a tristeza de ter nascido Deus..."

Humberto de Campos

História de bem-te-vi

Bem-te-vi-BetoMartins-a sOoL!! "Com estas florestas de arranha-céus que vão crescendo, muita gente pensa que passarinho é coisa só de jardim zoológico; e outras até acham que seja apenas antigüidade de museu. Certamente chegaremos lá; mas por enquanto ainda existem bairros afortunados onde haja uma casa, casa que tenha um quintal, quintal que tenha uma árvore. Bom será que essa árvore seja a mangueira. Pois nesse vasto palácio verde podem morar muitos passarinhos.

Os velhos cronistas desta terra encantaram-se com canindés e araras, tuins e sabiás, maracanãs e "querejuás todos azuis de cor finíssima...". Nós esquecemos tudo: quando um poeta fala num pássaro, o leitor pensa que é leitura...

Mas há um passarinho chamado bem-te-vi. Creio que ele está para acabar.

E é pena, pois com esse nome que tem — e que é a sua própria voz — devia estar em todas as repartições e outros lugares, numa elegante gaiola, para no momento oportuno anunciar a sua presença. Seria um sobressalto providencial e sob forma tão inocente e agradável que ninguém se aborreceria.

O que me leva a crer no desaparecimento do bem-te-vi são as mudanças que começo a observar na sua voz. O ano passado, aqui nas mangueiras dos meus simpáticos vizinhos, apareceu um bem-te-vi caprichoso, muito moderno, que se recusava a articular as três sílabas tradicionais do seu nome, limitando-se a gritar: "...te-vi! ...te-vi", com a maior irreverência gramatical. Como dizem que as últimas gerações andam muito rebeldes e novidadeiras achei natural que também os passarinhos estivessem contagiados pelo novo estilo humano.

Logo a seguir, o mesmo passarinho, ou seu filho ou seu irmão — como posso saber, com a folhagem cerrada da mangueira? — animou-se a uma audácia maior Não quis saber das duas sílabas, e começou a gritar apenas daqui, dali, invisível e brincalhão: "...vi! ...vi! ...vi! ..." o que me pareceu divertido, nesta era do twist.

O tempo passou, o bem-te-vi deve ter viajado, talvez seja cosmonauta, talvez tenha voado com o seu team de futebol — que se não há de pensar de bem-te-vis assim progressistas, que rompem com o canto da família e mudam os lemas dos seus brasões? Talvez tenha sido atacado por esses homens que agora saem do mato de repente e disparam sem razão nenhuma no primeiro indivíduo que encontram.

Mas hoje ouvi um bem-te-vi cantar E cantava assim: "Bem-bem-bem...te-vi!" Pensei: "É uma nova escola poética que se eleva da mangueira!..." Depois, o passarinho mudou. E fez: "Bem-te-te-te... vi!" Tornei a refletir: "Deve estar estudando a sua cartilha... Estará soletrando..." E o passarinho: "Bem-bem-bem...te-te-te...vi-vi-vi!"

Os ornitólogos devem saber se isso é caso comum ou raro. Eu jamais tinha ouvido uma coisa assim! Mas as crianças, que sabem mais do que eu, e vão diretas aos assuntos, ouviram, pensaram e disseram: "Que engraçado! Um bem-te-vi gago!"

(É: talvez não seja mesmo exotismo, mas apenas gagueira...)"

Cecília Meireles in: Escolha o seu sonho, 2002, pág. 53.

domingo, dezembro 12, 2010

Tô Só

W_unknown-a sOoL!!
"Vamo brincá de ficá bestando e fazê um cafuné no outro e sonhá que a gente enricô e fomos todos morar nos Alpes Suíços e tamo lá só enchendo a cara e só zoiando? Vamo brincá que o Brasil deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num festival de povão e dotô? Vamo brincá que a peste passô, que o HIV foi bombardeado com beagacês, e que tá todo mundo de novo namorando? Vamo brincá de morrê, porque a gente não morre mais e tamo sentindo saudade até de adoecê? E há escola e comida pra todos e há dentes na boca das gentes e dentes a mais, até nos pentes? E que os humanos não comem mais os animais, e há leões lambendo os pés dos bebês e leoas babás? E que a alma é de uma terceira matéria, uma quântica quimera, e alguém lá no céu descobriu que a gente não vai mais pro beleléu? E que não há mais carros, só asas e barcos, e que a poesia viceja e grassa como grama (como diz o abade), e é porreta ser poeta no Planeta? Vamo brincá

de teta

de azul

de berimbau

de doutora em letras?

E de luar? Que é aquilo de vestir um véu todo irisado e rodar, rodar...

Vamo brincá de pinel? Que é isso de ficá loco e cortá a garganta dos otro?

Vamo brincá de ninho? E de poesia de amor?

nave

ave

moinho

e tudo mais serei

para que seja leve

meu passo

em vosso caminho.*

Vamo brincá de autista? Que é isso de se fechá no mundão de gente e nunca mais ser cronista? Bom-dia, leitor. Tô brincando de ilha."

Hilda Hilst in: "Correio Popular" de Campinas-SP

quarta-feira, dezembro 01, 2010

Soneto

Janela_by_lucbravos-a sOoL!!Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

Gregório de Matos