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Música Brasileira

"Não é bom para o homem estar só mas ele está só, mesmo assim, ele espera e está só, ele adia e está só, só ele sabe que mesmo adiando chegará."
Natan Zach

sábado, agosto 07, 2010

Ele e o Outro (trecho)

x_horizon-a sOoL!!
"(...) A torrente das formas continuou o seu curso: a que era aspirada por Deus e a outra, em sentido contrário, expirada por Deus. Klein viu seres que se opunham à torrente, que se erguiam em terríveis convulsões e criavam horríveis sofrimentos: heróis, criminosos, loucos, pensadores, amorosos, religiosos. Outros viu, semelhantes a si, derivando rápidos e ligeiros na íntima volúpia da entrega, do acordo, bem-aventurados com ele. O cântico dos bem-aventurados e o infinito brado de angústia dos desventurados, formava sobre as duas torrentes do mundo uma esfera ou cúpula de sons, uma abóbada de música cujo centro era Deus, claro, invisível de claridade, uma essência resplendente, uma quintessência de luz, envolta no renascer da música pelos coros do mundo em eterna ressaca.

Heróis e pensadores, profetas e apóstolos, saíam da torrente do mundo: «Vede, este é Deus, o Senhor, e o seu caminho leva à paz», proclamava um e muitos o seguiam. Outro anunciava que o caminho de Deus levava à luta e à guerra. Um chamava-lhe luz, outro chamava-lhe noite; um chamava-lhe pai, outro chamava-lhe mãe. Um louvava-o como repouso, outro como movimento, como fogo, como refrigério, como juiz, como consolador, como criador, como destruidor, como redentor e como vingador. Deus, porém, não dava a si próprio nenhum nome. Queria ser denominado, queria ser amado, queria ser louvado, amaldiçoado, odiado, adorado, pois a música dos coros do mundo era o seu templo e a sua vida – mas era-lhe indiferente o nome com que o louvavam, o amor ou o ódio que lhe votavam, que o procurassem no repouso, no sono, na dança, no delírio: todos podiam procurar, todos podiam encontrar.

Klein ouviu então a sua própria voz. Cantava. Com voz nova e sonora, cantava alto o retumbante elogio e louvor a Deus. Cantava e vogava arrastado pela corrente, no meio de milhões de seres, como um profeta e um apóstolo. Soava alto o seu cântico, a cúpula de som subia, e Deus, ao centro, resplandecia. As torrentes prosseguiam em prodigioso bramir."

Hermann Hesse in: Ele e o Outro

sexta-feira, agosto 06, 2010

Com Agulhas de Prata

NATURELLE-a sOoL!!Com agulhas de prata
de brilho tão fino
bordai as sedas do vosso destino.

Bordai as tristezas
de todos os dias
e repentinamente as alegrias.

Que fiquem as sedas
muito primorosas
mesmo com lágrimas presas nas rosas.

Com agulhas de prata
de brilho tão frio…
ai, bordai as sedas,
sem partir o fio!

Cecília Meireles

Uma Chama de Glória

MARIAH-a sOoL!!

"Estava eu sentado, perto do mar, a ouvir com pouca atenção um amigo meu que falava arrebatadamente de um assunto qualquer, que me era apenas fastidioso. Sem ter consciência disso, pus-me a olhar para uma pequena quantidade de areia que entretanto apanhara com a mão; de súbito vi a beleza requintada de cada um daqueles pequenos grãos; apercebia-me de que cada pequena partícula, em vez de ser desinteressante, era feito de acordo com um padrão geométrico perfeito, com ângulos bem definidos, cada um deles dardejando uma luz intensa; cada um daqueles pequenos cristais tinha o brilho de um arco-íris... Os raios atravessavam-se uns aos outros, constituindo pequenos padrões, duma beleza tal que me deixava sem respiração... Foi então que, subitamente, a minha consciência como que se iluminou por dentro e percebi, duma forma viva, que todo o universo é feito de partículas de material, partículas que por mais desinteressantes ou desprovidas de vida que possam parecer, nunca deixam de estar carregadas daquela beleza intensa e vital. Durante um segundo ou dois, o mundo pareceu-me uma chama de glória. E uma vez extinta essa chama, ficou-me qualquer coisa que nunca mais esqueci que me faz pensar constantemente na beleza que encerra cada um dos mais ínfimos fragmentos de matéria à nossa volta."

Aldous Huxley

quarta-feira, agosto 04, 2010

Reserva de Chuvas

MIRIAMGALDINO-a sOoL!! Na escola, zombaram de minha pronúncia torta,
ameaçaram-me com canivetes no recreio.
Assisti a covardia crescer, aquietado no fundo da sala.
Durante anos, contive o veludo áspero da pata,
a soleira da pata, a vogal da pata.
Preparei a vingança pelas palavras.

Roubei o dízimo, enrolei o papel seda
dos versículos para fumar tuas promessas.
Pisei em teu rosto com a luz suja de um livro.
A neblina me perseguiu enfurecida
e não viu que estava nela.
Peço desculpas como uma criança,
as mãos algemadas
na inocência nociva.

Como enganar os gestos?
Minha vontade de abraçar
esgana.

Todos meus erros descendem do excesso,
não da penúria.

Deus, será que tua água
vem da sede do homem?
Será que nossa sede é potável?

As diferenças nos assemelham,
o único vizinho do mar é o abismo.
Estou extremamente perto
e morro distante.
Mora numa morte emprestada.

Cerca-me da cegueira,
tal relâmpago que acende o bosque
para as aves pousarem nele.

Cerca-me da cegueira,
desapegando do que não vi.

Cerca-me da cegueira,
a fidelidade do vento é testada no naufrágio.

Cerca-me da cegueira,
como uma fruta apanhada com os dentes.

Cega-me.
Meu desespero fracassou
ao passar a noite em claro.
Fez amizade com as sombras.

Fabrício Carpinejar